terça-feira, 29 de março de 2016

MARIA RITA
        Carol Cíntia
        Já era muito quando uma trovoada sacudiu o TALHADO da Ibiapaba. Ouviu-se um grande ruído como se uma tromba d'água tivesse tocado a ponta da serra. O medo tomou conta da pequena cidade e todos se recolheram, pois a tempestade já se anunciava. Maria Rita aconchegou-se a João Paulo que dormia ao seu lado na choupana bem perto do riacho. A chuva já se aproximava e o vento assobiava na copa dos coqueiros. O casal saiu correndo aproveitando o clarão dos relâmpagos para abrir passagem por entre o canavial. Perto da cerca que separava os dois sítios eles se despediram em silêncio. João Paulo pulou a janela da cozinha e encontrou Amelinha trêmula de medo ao lado dos seis filhos. Vestia um roupão de mangas compridas e rezava baixinho. João Paulo olhou para aquela figura angelical e mais uma vez constatou que ela era santa demais para o seu gosto de homem viril e selvagem.
        Depois de lavar os pés deitou-se na sua rede branca de varandas e começou a pensar no vazio de sua vida e na monotonia das suas noites ao lado de Amelinha, criatura tão boa, tão educada  mas desprovida de atrativos para sua sede de amor. Pensou em Maria Rita, tão tentadora e tão irreverente. Lá fora a chuva caía forte e torrencial. Mais tarde a “Bica do Ipu” gemia alto como um monstro vomitando troncos de madeira, galhos de árvores, animais sem vida, pedras enormes e tudo mais que tentasse impedir o curso do rio. João Paulo começou a lembrar de outras épocas quando Maria Rita era quase uma menina: bonita, morena, brejeira, olhos rasgados. Passeava a sua beleza pelas estradas floridas do Ipu, afrontando a pequenina cidade com os seus galopes atrevidos. Quantas vezes o provincianismo fazia as beatas torcerem o rosto com desdém. Maria Rita sorria do alto de sua superioridade.
        Um dia porém tiveram o seu primeiro encontro debaixo do Juazeiro. Maria Rita mostrou todo o seu poder de sedução. João Paulo apaixonou-se perdidamente pela morena de seus sonhos. A família do rapaz caiu em desespero pois não podia aceitar uma ligação com uma jovem tão avançada e de atitudes tão diferentes dos padrões impostos pela sociedade da época. João Paulo e Maria Rita viveram um amor intenso, desafiando o céu e a terra. A família apressou-se em mandar o rapaz para concluir os seus estudos em Fortaleza. Houve abraços, beijos e muitas lágrimas na despedida. Neste tempo as cidades do interior eram muito visitadas por caixeiros viajantes, representantes de várias firmas do sul do país. Maria Rita, cansada de esperar, depressa foi consolada por outros amores que surgiram em sua vida. Tempos depois João Paulo desembarca na cidade com uma bonita farda verde-oliva e foi logo recebendo informações sobre as peripécias de Maria Rita. A família arquitetou um plano, tinha que arranjar uma noiva para o rapaz.
        A eleita foi Amelinha, linda menina, filha de Oduvaldo Carvalho que morava na magnifica vivendo no bucólico quadro da Igrejinha. Amelinha era meiga, simpática, educada, simples e bela. Era a mulher ideal para ser a mãe de seus filhos. Meses depois houve o casamento com muita festa e muitos convidados. Foi o casamento do ano. Segundo as más línguas o casamento não deu certo desde a primeira noite devido ao puritanismo de Amelinha. João Paulo foi visto, muitas vezes, durante a noite passeando pelos sítios amenos onde tantas vezes fizera amor com a encantadora Maria Rita. A verdade é que Maria Rita também não foi feliz. A lembrança de João Paulo continuava muito viva no seu coração. João Paulo tornou-se frio e indiferente com Amelinha. Bebericava pelos botecos e só chegava em casa altas horas da noite cambaleando e com cara cheia a de conhaque. O seu relacionamento sexual era monótono e jamais satisfazia a sua volúpia de amor. Sonhava com Maria Rita e sentia saudades do seu cheiro, do seu jeito, do seu corpo moreno, enfim, ele via em cada mulher um pouco do feitiço de Maria Rita. Era uma vida triste e sem razão de ser. Por este tempo Maria Rita morava na terra do Padre Cícero, Juazeiro do Norte. Ninguém mais ouviu falar no seu nome.
        Um dia, porém chegou à notícia de que Maria Rita ficara viúva e estava de volta para a cidade natal. Foi demais para o coração de João Paulo. Lembrou-se das noites de luar, das serenatas, dos passeios de barco pelo açude do Bonito, dos banhos na cachoeira… O vulto de Maria Rita surgiu no meio da noite como uma obsessão. Maria Rita voltou, mas desde a morte trágica do marido ninguém via nem a sua sombra. Numa noite João Paulo resolveu fazer uma caçada de marrecos no açude do Bonito. Enquanto os homens retiravam do uru as marrecas gritadeiras. João Paulo deitou-se no estivado, acendeu um cigarro e viu nas espirais o vulto de Maria Rita despida e sensual a sorrir para ele.
        Pela madrugada uma barra tênue e indecisa anunciava a chegada de um novo dia. João Paulo olhava a placidez das águas e avistou ao longe uma canoa que vinha em sua direção. Ficou olhando para ver quem se arriscava a fazer tamanha travessia. O açude estava muito cheio e a aventura era por demais perigosa. Era uma mulher, pois os cabelos esvoaçavam ao sopro do vento. Remava com segurança e com determinação. De repente ele pensou: Seria Maria Rita? Não, seria demais para ele. Depois de alguns instantes não havia mais dúvida, era Maria Rita. A amada usava uma roupa amarela que lhe pareceu dourada pelos raios do amanhecer. Com os cabelos negros e soltos, pálida e bela mais parecia uma deusa grega. João Paulo estava estático e olhava incrédulo para aparição divina.
        Só tinha uma coisa a fazer e fez. Correu para ela, pegou-a nos braços musculosos e beijou seu rosto amado. Levou o fardo precioso para a tocaia e colocou sobre o colchão de palhas. Foi um ritual de lágrimas, de abraços, de beijos e de muito amor até o amanhecer. Foram momentos benditos e eternos. Ficaram quietos e agarrados até o meio dia. A vida devolvia para eles toda a felicidade que julgavam perdida. Marcaram um novo encontro na cabana perto do riacho. Foi justamente na noite da tempestade e que desabou também um temporal na vida de João Paulo. E no silêncio da cabana Maria Rita fizera o ultimato: ou ela ou Amelinha. João Paulo não precisava pensar para decidir. Não mais podia viver sem Maria Rita.
        Quando a noite caiu João Paulo entregou uma carta destinada a Amelinha e aos filhos. Colocou no alforje algumas roupas e muitos contos de réis. Montou rápido o seu cavalo branco e rumou para o Juazeiro onde uma amazona já o esperava. Seguiram os dois pela escuridão do caminho certos de que o amor tudo vence e tudo suporta.

        E foi a última vez que João Paulo e Maria Rita foram vistos no sopé da Ibiapaba, nas terras benditas do Ipu.

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