Lembranças de janeiro
Ipu festejava o seu padroeiro. Naquela época, em
janeiro, a cidade se transformava. O momento mais esperado era, para as
crianças, a chegada do parque de diversões e para os adolescentes e adultos, as
festas dançantes do Grêmio Ipuense. Como estava vivendo entre a infância
e a adolescência, os dois momentos eram mágicos para mim.
Não perdia uma novena. Não que fosse religioso ou
temente a Deus. Como a maioria de meus colegas, não estava muito preocupado com
o que o padre tinha para dizer. E nem entendia muito o que dizia aquele homem
com o microfone na mão. Suas palavras não faziam muito sentido para mim. Queria
mesmo era ver gente, brincar, olhar o povo, paquerar as meninas.
Depois da missa, íamos para o Pavilhão. Para
quem não conhece, é uma praça em forma de elipse e que tem no seu centro um
bar. A nossa diversão era ficar rodando em torno do bar, escutando música,
conversando e paquerando.
O parque ficava bem próximo do Pavilhão, na
atual praça do “pau mole”. Havia uma movimentação constante: ora íamos para o
parque, ora voltávamos para o pavilhão. Nossas idas e vindas, muitas vezes,
eram determinadas pelas garotas. Queríamos estar perto daquelas que
paquerávamos.
Não me lembro quantos anos tinha. Naquele tempo as
coisas não eram fáceis. Éramos cinco em casa, minha mãe, eu, o caçula da
família, e três irmãs. Todos os meus outros irmãos e irmãs moravam no Rio de
Janeiro, com exceção de um apenas, que morava em Fortaleza. Ao todo éramos
quatorze.
Minha mãe costurava em casa para sustentar a
família. O som incessante de duas máquinas de costura Singer trabalhando
o dia todo, e às vezes à noite toda, marcou indelevelmente minha adolescência.
Sempre moramos em casa alugada. Por isso vivíamos
nos mudando, razão pela qual não me lembro exatamente em qual casa morávamos
naquele ano. O sonho de minha mãe era ter casa própria, algo que só conseguiu
muitos anos depois. Não faltava comida, mas vivíamos com dificuldade.
Acompanhei durante muito tempo os lamentos de minha guerreira mãe. Apesar das
dificuldades, nunca deixou faltar o necessário. Alguns de meus irmãos, que
trabalhavam no Rio de Janeiro, ajudavam mandando uma quantia mensal de dinheiro
para ajudar nas despesas.
Foi num dia de festa dançante daquele mês de
janeiro, de alegrias e dificuldades, que ocorreu um episódio que carrego em
minha memória com uma clareza enorme e que me marcou muito.
O Grêmio tinha sido enfeitado para a grande
festa dançante. Uma banda de renome na região tinha sido contratada. Por mais
que me esforce não consigo lembrar qual era. Não tinha o dinheiro para comprar
o ingresso. Chorei o dia todo, pedindo a minha mãe que me desse a quantia que
precisava. O dia inteiro ela tinha dito que não tinha sequer um “tostão
furado”.
À noite, depois de muito chorar, resolvi “atentar”
de novo a minha mãe. Depois de tanta insistência e não aguentar mais os meus
lamentos, ela foi ao seu quarto, pegou a carteira e me deu o dinheiro dizendo,
com raiva, mais ou menos assim: “pega seu traste, vai para a tua festa. É o
dinheiro da feira. Amanhã tu vai morrer de fome!”
Peguei o dinheiro, ainda chorando. Coloquei a minha
melhor roupa. Roupas boas não me faltavam. Afinal, minha mãe e uma irmã eram
costureiras profissionais e sempre me presenteavam com boas peças. Fui, pois,
para a festa.
Consegui o que queria, mas estava profundamente
tocado pelas palavras de minha mãe. Elas não saiam da minha mente. Não
conseguia pensar em outra coisa, só naquilo. Entrei em conflito comigo mesmo.
Não era justo fazer aquilo!
Hesitei muito em gastar o dinheiro. Tinha a quantia
exata para pagar a entrada da festa e tomar um único refrigerante.
Fui covarde. Comprei o ingresso e entrei. Foi, até
certo ponto, a pior festa de toda a minha vida. Ficava me perguntando como
poderia ter feito aquilo. Veio uma vontade intensa e incessante de chorar.
Fiquei boa parte do espetáculo sentado nos degraus da quadra de esportes, hoje
um estacionamento, que davam acesso ao salão do Grêmio.
Em um determinado momento, deixei as escadas da
quadra e fui para o salão de danças. Não me lembro por que fiz isso. Só lembro
de abrir caminho entre os casais dançando. Nesse momento, vi no chão um maço de
notas. Peguei-o. Voltei para a quadra e, coincidentemente, era a mesma quantia
que a minha mãe havia me dado. Uma alegria imensa percorreu meu corpo. Não me
lembro de ter agradecido a Deus por isso. Com uma sede daquelas, corri para
tomar um guaraná. Um Wolga! Que alegria!
Aproveitei o tempo que restava para o fim da festa,
mas não via a hora de ver “mamãe”.
Ao retornar para casa, devolvi o dinheiro para ela.
Contei a história e fiquei com a consciência tranquila. Não sei se minha
“mamãe” acreditou ou ainda se lembra disso. Eu nunca esqueci.·.
Ipu, 4 de dezembro de 2013.
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