sexta-feira, 13 de novembro de 2015

Lembranças de janeiro

O episódio que vou contar ocorreu na década de 1980, não me lembro o ano exato, talvez fosse 1987 ou 1988. Era janeiro, lembro-me perfeitamente. Só menciono isso porque é importante para a narrativa.
Ipu festejava o seu padroeiro. Naquela época, em janeiro, a cidade se transformava. O momento mais esperado era, para as crianças, a chegada do parque de diversões e para os adolescentes e adultos, as festas dançantes do Grêmio Ipuense. Como estava vivendo entre a infância e a adolescência, os dois momentos eram mágicos para mim.
Não perdia uma novena. Não que fosse religioso ou temente a Deus. Como a maioria de meus colegas, não estava muito preocupado com o que o padre tinha para dizer. E nem entendia muito o que dizia aquele homem com o microfone na mão. Suas palavras não faziam muito sentido para mim. Queria mesmo era ver gente, brincar, olhar o povo, paquerar as meninas. 
Depois da missa, íamos para o Pavilhão. Para quem não conhece, é uma praça em forma de elipse e que tem no seu centro um bar. A nossa diversão era ficar rodando em torno do bar, escutando música, conversando e paquerando.
O parque ficava bem próximo do Pavilhão, na atual praça do “pau mole”. Havia uma movimentação constante: ora íamos para o parque, ora voltávamos para o pavilhão. Nossas idas e vindas, muitas vezes, eram determinadas pelas garotas. Queríamos estar perto daquelas que paquerávamos.
Não me lembro quantos anos tinha. Naquele tempo as coisas não eram fáceis. Éramos cinco em casa, minha mãe, eu, o caçula da família, e três irmãs. Todos os meus outros irmãos e irmãs moravam no Rio de Janeiro, com exceção de um apenas, que morava em Fortaleza. Ao todo éramos quatorze.
Minha mãe costurava em casa para sustentar a família. O som incessante de duas máquinas de costura Singer trabalhando o dia todo, e às vezes à noite toda, marcou indelevelmente minha adolescência.
Sempre moramos em casa alugada. Por isso vivíamos nos mudando, razão pela qual não me lembro exatamente em qual casa morávamos naquele ano. O sonho de minha mãe era ter casa própria, algo que só conseguiu muitos anos depois. Não faltava comida, mas vivíamos com dificuldade. Acompanhei durante muito tempo os lamentos de minha guerreira mãe. Apesar das dificuldades, nunca deixou faltar o necessário. Alguns de meus irmãos, que trabalhavam no Rio de Janeiro, ajudavam mandando uma quantia mensal de dinheiro para ajudar nas despesas.
Foi num dia de festa dançante daquele mês de janeiro, de alegrias e dificuldades, que ocorreu um episódio que carrego em minha memória com uma clareza enorme e que me marcou muito.
O Grêmio tinha sido enfeitado para a grande festa dançante. Uma banda de renome na região tinha sido contratada. Por mais que me esforce não consigo lembrar qual era. Não tinha o dinheiro para comprar o ingresso. Chorei o dia todo, pedindo a minha mãe que me desse a quantia que precisava. O dia inteiro ela tinha dito que não tinha sequer um “tostão furado”.
À noite, depois de muito chorar, resolvi “atentar” de novo a minha mãe. Depois de tanta insistência e não aguentar mais os meus lamentos, ela foi ao seu quarto, pegou a carteira e me deu o dinheiro dizendo, com raiva, mais ou menos assim: “pega seu traste, vai para a tua festa. É o dinheiro da feira. Amanhã tu vai morrer de fome!”
Peguei o dinheiro, ainda chorando. Coloquei a minha melhor roupa. Roupas boas não me faltavam. Afinal, minha mãe e uma irmã eram costureiras profissionais e sempre me presenteavam com boas peças. Fui, pois, para a festa.
Consegui o que queria, mas estava profundamente tocado pelas palavras de minha mãe. Elas não saiam da minha mente. Não conseguia pensar em outra coisa, só naquilo. Entrei em conflito comigo mesmo. Não era justo fazer aquilo!
Hesitei muito em gastar o dinheiro. Tinha a quantia exata para pagar a entrada da festa e tomar um único refrigerante.
Fui covarde. Comprei o ingresso e entrei. Foi, até certo ponto, a pior festa de toda a minha vida. Ficava me perguntando como poderia ter feito aquilo. Veio uma vontade intensa e incessante de chorar. Fiquei boa parte do espetáculo sentado nos degraus da quadra de esportes, hoje um estacionamento, que davam acesso ao salão do Grêmio.
Em um determinado momento, deixei as escadas da quadra e fui para o salão de danças. Não me lembro por que fiz isso. Só lembro de abrir caminho entre os casais dançando. Nesse momento, vi no chão um maço de notas. Peguei-o. Voltei para a quadra e, coincidentemente, era a mesma quantia que a minha mãe havia me dado. Uma alegria imensa percorreu meu corpo. Não me lembro de ter agradecido a Deus por isso. Com uma sede daquelas, corri para tomar um guaraná. Um Wolga! Que alegria!
Aproveitei o tempo que restava para o fim da festa, mas não via a hora de ver “mamãe”.
Ao retornar para casa, devolvi o dinheiro para ela. Contei a história e fiquei com a consciência tranquila. Não sei se minha “mamãe” acreditou ou ainda se lembra disso. Eu nunca esqueci.·.
Ipu, 4 de dezembro de 2013.

Postado por Antonio Vitorino às 05:18


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