“UMA RUA CHAMADA SAUDADE”
O jogo sempre foi a paixão, a ruína ou simplesmente a alegria do povo.
O jogo do bicho era motivo de grandes discussões numa ruazinha animada
no centro da cidade. Ela começa por trás da Igreja Matriz e termina na
Praça da Estação. Ela sempre foi habitada por pessoas felizes e
honestas. Lá moravam funcionários do Posto de Saúde DNERU, aposentados
da Estrada de Ferro e inúmeros
fazendeiros abastados. Lembro-me da casa da Deolina, uma costureira
afamada que morava com as irmãs, a bela Nenzinha, Totonia e Anita Peres
que casou com o meu tio Pretinho. A casa do Chico Lão era um barato, com
seus nove filhos bonitos e saudáveis. A rua era uma festa. Como eram
divertidas as rodas nas calçadas esperando a passagem do trem ou na hora
das novenas. Belos coqueiros enfeitavam o horizonte nas manhãs
fagueiras e à noite a lua passeava pelo céu com a sua nudez poética e
misteriosa. Havia violões e serestas pelas ruas. Era o Boulevard Pedro
II, depois Avenida da Municipalidade e hoje Vereador Francisco das
Chagas Farias. No Boulevard morava uma pessoa muito especial, o Sr.
Joaquim Dias Martins. Era uma figura inteligente, fina e de família
tradicional da cidade. A sua ironia era incomparavelmente cheia de
inovações. Era responsável pelos leilões, quermesses e tudo o mais que
se passo imaginar em termos de festa e de criatividade. Era prestativo e
amigo verdadeiro. Gostava de criar situações interessantes e era um
grande contador de “causos” e anedotas. Ele chamava o Boulevard de “Rua
do Papoco” porque algumas vezes surgia uma confusão lá pras bandas das
casinhas de taipa. Lá moravam a Dulça, a Luça, a Domitila, a Capota, mãe
do Peixe, ainda pequenina, o Feitosa e tanta gente boa que ainda mora
na minha saudade. Numa coisa os moradores de rua se afinavam. Quase
todos alimentavam o sonho de ganhar fortuna jogando no “bicho”. Pela
manhã era fácil encontrar rodinhas destrinchando os sonhos de noite para
arriscar um palpite. À tardinha era um corre-corre medonho à espera do
resultado do jogo. Um emissário fazia plantão no Bar do Zé Procópio para
verificar qual o número do bicho que figurava na tabuleta pendurada na
parede. Numa bela tarde de maio o jogo estava bastante carregado, mas o
resultado estava demorando demais a chegar. Já era quase hora da
Procissão e nada. Todos já se dirigiam para a Igreja Matriz e a banda de
música já executava os dobrados saudosos no patamar. As filhas de Maria
já formavam a ala principal levando o andor da Virgem Maria. No meio da
fila estavam a Mundoca, a Bastiana e a Cecília. As três quase não
rezavam na ânsia de saber qual o bicho do dia, mas a tábua continuava
sem novidades. A procissão prosseguia pelas ruas da cidade e ouvia-se o
canto forte de Nossa Senhora que emocionava o mundo inteiro: Ave, ave,
ave, Maria…
Quando o cortejo passou bem em frente ao Bar do jogo do
bicho houve um movimento fora do comum. Finalmente já era conhecido o
número em questão. Como as religiosas eram baixinhas só havia um meio
de saber o resultado do jogo. Era preciso pedir a ajuda da Mundoca por
ser ela a mais alta da turma. E Bastiana plagiou:
Mundoca Farias
Que és mais alta que eu
Olha a tábua do Zé Procópio
E diz o bicho que deu.
Neste momento a Mundoca cantava contrita. Não perdeu a pose. Esticou o
pescoço, olhou de rabo de olho e continuou no embalo do hino:
Ave, ave, ave, AVESTRUZ!
Ave, ave, ave, AVESTRUZ!
(Texto de Eunice Martins
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quarta-feira, 19 de agosto de 2015
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