quinta-feira, 2 de abril de 2015

Viagem

Confesso que, mesmo já tendo andado muito, ainda fico ansiosa quando vou viajar sozinha ao querido Ipu, principalmente, pela expectativa de saber quem será o passageiro do lado. Já tive muito medo de ser contemplada com passagem vendida em duplicidade (confusão na certa), já peguei ônibus lotado, com muita gente em pé e já enfrentei uns odores de banheiros bem sujos (oh céus), mas a situação já melhorou muito e, felizmente, há tempos não passo por nenhuma situação semelhante. Gosto de gente e não tenho problema nenhum com pessoas, mas uma viagem de cinco horas precisa acontecer com o mínimo de tranquilidade e, no meu caso, isso não precisa ser sinônimo de silêncio.
Claro que é melhor ir com a mamãe. É sempre aquele cuidado: a ligação para o taxi com antecedência, a água, o lanche, o papel higiênico, a sacola de remédio, o lençol. Tantas vezes eu disse o “não precisa” e fui salva pelos cuidados dela. Parece que os anos não passam e ela transmite a mesma segurança da infância. Não é a toa que, involuntariamente, ainda quero segurar a sua mão quando cruzamos a rua. Vai muito além de uma travessia de pedestres: é a segurança de atravessar a vida juntas.
Dia desses tive que viajar sozinha mais uma vez. Os tempos mudaram e não tenho mais o mês completo de férias no Ipu. Mamãe foi na frente e, devido aos trabalhos e cursos de extensão, tive que esperar chegar o sábado. No meu permanente contexto alérgico, inflamação na garganta e gripe são resultados certos da combinação mudança de clima e poeira da reforma do apartamento. Sem dramas, eu não estava nada bem.
Aprendi a chegar cedo à rodoviária e acabei sentando nos bancos em frente à famosa Plataforma 6. Permaneci uma hora com a cara  de quem não consegue nem encarar a luz do dia. Com toda aquela coriza, febre e dor no corpo, os meus únicos pensamentos eram não perder o horário de tomar os remédios e, claro, chegar em paz e aproveitar o aniversário de 79 anos da vovó Tereza, afinal, todo o mundo já estava lá.
A hora, enfim, chegou. Uma coisa boa das viagens rápidas é não levar muita mala e, consequentemente, passar direto pela fila do bagageiro. Nada contra essa fase, inclusive, já encontrei muita gente boa e conhecida na espera de guardar os pacotes maiores, mas ali eu queria mesmo era sentar na esperada poltrona número 6. Fui uma das primeiras a entrar e deitar a cadeira do corredor. Prefiro janela, aliás, prefiro muito, muito, muito uma boa janela, mas quando se viaja só é mais fácil ficar no corredor para esticar as pernas ou dar uma levantada de vez em quando.
De repente, chega um senhor já idoso e sinaliza que vai sentar na poltrona ao lado. Muito simpático ele, de pronto, pergunta:
-Boa tarde! Está indo para Guaraciaba?
E eu respondi com aquele sorriso de reciprocidade perante toda aquela educação:
- Boa tarde! Não. Hoje vou descer em Ipu.
Imediatamente ele disse:
-Itu? Aqui tem uma Itu igual a São Paulo?  É aquela cidade que tem tudo grande?
Coisa muito comum durante toda a minha vida foi essa confusão de Ipu com Itu. Já tenho o discurso que começa com o “p” e não com “t”, passa pela origem indígena da palavra e termina na Bica.
Após, vieram as apresentações. Sr. Roberto pareceu ficar satisfeito com a explicação e passou a falar de sua vida. Estava vindo da Paraíba, especialmente para visitar seu filho, engenheiro agrônomo em Guaraciaba do Norte, nora e neto. Estava acompanhado da sua esposa e sua sogra, uma senhora de seus quase noventa anos, e pretendia esticar a viagem até a Semana Santa. Todos pareciam bem animados com a viagem. Logo nos primeiros momentos, percebi que ele chamava sua esposa de “Filha” com uma doçura bonita de ouvir.
O meu mais novo colega de andanças, sutilmente, mencionou que o seu companheiro de poltrona no percurso Paraíba-Ceará havia ficado muito calado durante todo o trajeto e não fez questão de esconder que isso o deixou um tanto chateado. Logo ele, um “grande admirador dos relacionamentos humanos”. Aí vi que não tinha jeito. Não ia conter as palavras daquele simpático senhor e ser responsável por mais um angustiante silêncio. Já imaginei o homem chegando arrasado em Guaraciaba e contando ao filho que, para a sua tristeza, não havia trocado uma palavra com um vivente durante todas as horas de viagem. Então, deixei de pensar em doença e comecei a conversar com mais entusiasmo.
A verdade é que o viajante não passou nem dois minutos calado na primeira hora de percurso. Hoje já fiz minhas consultas, mas, naquela tarde, não sabia exatamente a origem “ao pé da letra” da expressão popular “fala mais que o homem da cobra”, mas era algo do tipo tagarela, falante, conversador. Pois pronto. Estava diante da personificação do “homem da cobra” no melhor dos seus sentidos.
Falamos sobre sua experiência na Educação, Gestão Pública e Direito. Ele também percebeu meu anel de formatura e teceu seus elogios sobre a delicadeza do adereço. Não uso tanto a joia em Fortaleza por questões de segurança, mas foi presente da vovó e sempre procuro usar quando estou com ela. Sr. Roberto não esqueceu seus três filhos, três netos e uma infinidade de parentes, amigos e conhecidos. Uma riqueza de detalhes impressionante que chegou até relatos dos seus sete anos de idade, no colégio. Falamos, ainda, de suas viagens pelo Brasil e de seu dançar com Miss Paraíba na juventude. Entre idas e vindas no papo, Sr. Roberto sempre ressaltava o respeito, admiração e o amor pelo seu pai já falecido e dava gosto de ouvir todos as suas histórias. Terminava uma e começava outra. Não costumo dormir em viagens, mas senti que, apesar da moleza e da gripe, ali o sono não iria chegar.
Como já disse, adoro janela. Gosto de revisitar paisagens que vi a vida toda e também perceber coisas novas ao longo da estrada. Na oportunidade, com todo respeito aos profissionais do Turismo, pude ser guia por um dia. Apresentei alguns bairros de Fortaleza, falamos sobre as condições da estrada, beleza e infraestrutura dos caminhos percorridos.
Logo saímos da zona urbana e dava gosto de ver as plantas tão verdes. Ele estava bem impressionado com essa inusitada paisagem para o sertão do Ceará. Conversamos sobre a força da natureza que parece estar morta em tempos de seca, mas desabrocha logo após as primeiras chuvas. Sr. Roberto só estava queixoso pois não via um gadinho naquele verde todo. Estiramos os pescoços mais alguns minutos e avistamos as primeiras vacas lá longe. Ele deixou escapar aquele sorriso de satisfação.
Em Canindé, já estávamos brancos de farelos de broa e, claro, eu já estava bem melhor de saúde. Sim, também tenho um grande lado que “fala mais que o homem da cobra”.
Tivemos os 20 minutos de praxe para parar em Caiçara e, ao ver a placa do restaurante, Sr. Roberto mencionou que também existe um município homônimo no interior da Paraíba. Descemos um pouco do ônibus e ele aproveitou pala elogiar o clima agravável da cidade. Olhei para o chão e vi muitas poças d’agua. Só muita chuva pra aliviar a quentura local.
Fiz questão de falar que, na rodoviária de Fortaleza, não via a hora de chegar no Ipu, ultrapassar a viagem que tinha tudo para ser terrível, mas, muito pelo contrário, estava sendo uma das mais agradáveis da minha vida. Vi que ele ficou contente e orgulhoso com aquele comentário.
Não podia deixar de comentar que estava viajando para comemorar o natalício da vovó e mostrei até as fotos de alguns parentes que já estavam no Ipu organizando tudo. Ele teceu desejos de saúde e vida longa e ficou impressionadíssimo em saber que eu faria a viagem de volta à capital em menos de 24 horas.
O tempo passou. Tive a oportunidade de deixar os melhores cumprimentos e votos de uma boa viagem ao simpático companheiro de viagem, sua esposa e sua sogra. Sempre ouvi por aí que “a palavra tem poder” e, de fato, as palavras do Sr. Roberto afastaram por algumas horas qualquer sinal de doença. Relembrei muito uma das primeiras colocações que aprendi no curso de Direito – as tais “relações intersubjetivas”, famosas no contexto do ubi societas, ibi jus e que, tempos depois, estiveram presentes nas linhas dos meus estudos sobre Gestão de Pessoas.
 O aroma do sachê que ganhei do Sr. Roberto, adquirido de uma das vendedoras que costumam entrar nos ônibus minutos antes da partida, já passou, mas uma coisa que eu nunca vou esquecer é a lição que recebi daquele homem que, despretensiosamente, sentou ao meu lado e deixou sua boca falar do que seu coração estava cheio: amor.




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