Viagem
Confesso que,
mesmo já tendo andado muito, ainda fico ansiosa quando vou viajar sozinha ao querido
Ipu, principalmente, pela expectativa de saber quem será o passageiro do lado. Já
tive muito medo de ser contemplada com passagem vendida em duplicidade (confusão
na certa), já peguei ônibus lotado, com muita gente em pé e já enfrentei uns
odores de banheiros bem sujos (oh céus), mas a situação já melhorou muito e,
felizmente, há tempos não passo por nenhuma situação semelhante. Gosto de gente
e não tenho problema nenhum com pessoas, mas uma viagem de cinco horas precisa
acontecer com o mínimo de tranquilidade e, no meu caso, isso não precisa ser
sinônimo de silêncio.
Claro que é
melhor ir com a mamãe. É sempre aquele cuidado: a ligação para o taxi com antecedência,
a água, o lanche, o papel higiênico, a sacola de remédio, o lençol. Tantas
vezes eu disse o “não precisa” e fui salva pelos cuidados dela. Parece que os
anos não passam e ela transmite a mesma segurança da infância. Não é a toa que,
involuntariamente, ainda quero segurar a sua mão quando cruzamos a rua. Vai
muito além de uma travessia de pedestres: é a segurança de atravessar a vida
juntas.
Dia desses
tive que viajar sozinha mais uma vez. Os tempos mudaram e não tenho mais o mês completo
de férias no Ipu. Mamãe foi na frente e, devido aos trabalhos e cursos de extensão,
tive que esperar chegar o sábado. No meu permanente contexto alérgico, inflamação
na garganta e gripe são resultados certos da combinação mudança de clima e
poeira da reforma do apartamento. Sem dramas, eu não estava nada bem.
Aprendi a
chegar cedo à rodoviária e acabei sentando nos bancos em frente à famosa
Plataforma 6. Permaneci uma hora com a cara de quem não consegue nem encarar a luz do dia.
Com toda aquela coriza, febre e dor no corpo, os meus únicos pensamentos eram
não perder o horário de tomar os remédios e, claro, chegar em paz e aproveitar
o aniversário de 79 anos da vovó Tereza, afinal, todo o mundo já estava lá.
A hora, enfim,
chegou. Uma coisa boa das viagens rápidas é não levar muita mala e,
consequentemente, passar direto pela fila do bagageiro. Nada contra essa fase,
inclusive, já encontrei muita gente boa e conhecida na espera de guardar os
pacotes maiores, mas ali eu queria mesmo era sentar na esperada poltrona número
6. Fui uma das primeiras a entrar e deitar a cadeira do corredor. Prefiro
janela, aliás, prefiro muito, muito, muito uma boa janela, mas quando se viaja
só é mais fácil ficar no corredor para esticar as pernas ou dar uma levantada
de vez em quando.
De repente,
chega um senhor já idoso e sinaliza que vai sentar na poltrona ao lado. Muito
simpático ele, de pronto, pergunta:
-Boa tarde!
Está indo para Guaraciaba?
E eu respondi com
aquele sorriso de reciprocidade perante toda aquela educação:
- Boa tarde! Não.
Hoje vou descer em Ipu.
Imediatamente
ele disse:
-Itu? Aqui tem
uma Itu igual a São Paulo? É aquela
cidade que tem tudo grande?
Coisa muito
comum durante toda a minha vida foi essa confusão de Ipu com Itu. Já tenho o
discurso que começa com o “p” e não com “t”, passa pela origem indígena da
palavra e termina na Bica.
Após, vieram
as apresentações. Sr. Roberto pareceu ficar satisfeito com a explicação e
passou a falar de sua vida. Estava vindo da Paraíba, especialmente para visitar
seu filho, engenheiro agrônomo em Guaraciaba do Norte, nora e neto. Estava
acompanhado da sua esposa e sua sogra, uma senhora de seus quase noventa anos,
e pretendia esticar a viagem até a Semana Santa. Todos pareciam bem animados
com a viagem. Logo nos primeiros momentos, percebi que ele chamava sua esposa
de “Filha” com uma doçura bonita de ouvir.
O meu mais
novo colega de andanças, sutilmente, mencionou que o seu companheiro de
poltrona no percurso Paraíba-Ceará havia ficado muito calado durante todo o
trajeto e não fez questão de esconder que isso o deixou um tanto chateado. Logo
ele, um “grande admirador dos relacionamentos humanos”. Aí vi que não tinha
jeito. Não ia conter as palavras daquele simpático senhor e ser responsável por
mais um angustiante silêncio. Já imaginei o homem chegando arrasado em
Guaraciaba e contando ao filho que, para a sua tristeza, não havia trocado uma
palavra com um vivente durante todas as horas de viagem. Então, deixei de
pensar em doença e comecei a conversar com mais entusiasmo.
A verdade é
que o viajante não passou nem dois minutos calado na primeira hora de percurso.
Hoje já fiz minhas consultas, mas, naquela tarde, não sabia exatamente a origem
“ao pé da letra” da expressão popular “fala mais que o homem da cobra”, mas era
algo do tipo tagarela, falante, conversador. Pois pronto. Estava diante da
personificação do “homem da cobra” no melhor dos seus sentidos.
Falamos sobre
sua experiência na Educação, Gestão Pública e Direito. Ele também percebeu meu
anel de formatura e teceu seus elogios sobre a delicadeza do adereço. Não uso
tanto a joia em Fortaleza por questões de segurança, mas foi presente da vovó e
sempre procuro usar quando estou com ela. Sr. Roberto não esqueceu seus três
filhos, três netos e uma infinidade de parentes, amigos e conhecidos. Uma
riqueza de detalhes impressionante que chegou até relatos dos seus sete anos de
idade, no colégio. Falamos, ainda, de suas viagens pelo Brasil e de seu dançar
com Miss Paraíba na juventude. Entre idas e vindas no papo, Sr. Roberto sempre
ressaltava o respeito, admiração e o amor pelo seu pai já falecido e dava gosto
de ouvir todos as suas histórias. Terminava uma e começava outra. Não costumo
dormir em viagens, mas senti que, apesar da moleza e da gripe, ali o sono não
iria chegar.
Como já disse,
adoro janela. Gosto de revisitar paisagens que vi a vida toda e também perceber
coisas novas ao longo da estrada. Na oportunidade, com todo respeito aos
profissionais do Turismo, pude ser guia por um dia. Apresentei alguns bairros
de Fortaleza, falamos sobre as condições da estrada, beleza e infraestrutura
dos caminhos percorridos.
Logo saímos da
zona urbana e dava gosto de ver as plantas tão verdes. Ele estava bem
impressionado com essa inusitada paisagem para o sertão do Ceará. Conversamos
sobre a força da natureza que parece estar morta em tempos de seca, mas
desabrocha logo após as primeiras chuvas. Sr. Roberto só estava queixoso pois
não via um gadinho naquele verde todo. Estiramos os pescoços mais alguns
minutos e avistamos as primeiras vacas lá longe. Ele deixou escapar aquele
sorriso de satisfação.
Em Canindé, já
estávamos brancos de farelos de broa e, claro, eu já estava bem melhor de saúde.
Sim, também tenho um grande lado que “fala mais que o homem da cobra”.
Tivemos os 20
minutos de praxe para parar em Caiçara e, ao ver a placa do restaurante, Sr.
Roberto mencionou que também existe um município homônimo no interior da Paraíba.
Descemos um pouco do ônibus e ele aproveitou pala elogiar o clima agravável da
cidade. Olhei para o chão e vi muitas poças d’agua. Só muita chuva pra aliviar
a quentura local.
Fiz questão de
falar que, na rodoviária de Fortaleza, não via a hora de chegar no Ipu,
ultrapassar a viagem que tinha tudo para ser terrível, mas, muito pelo
contrário, estava sendo uma das mais agradáveis da minha vida. Vi que ele ficou
contente e orgulhoso com aquele comentário.
Não podia
deixar de comentar que estava viajando para comemorar o natalício da vovó e
mostrei até as fotos de alguns parentes que já estavam no Ipu organizando tudo.
Ele teceu desejos de saúde e vida longa e ficou impressionadíssimo em saber que
eu faria a viagem de volta à capital em menos de 24 horas.
O tempo
passou. Tive a oportunidade de deixar os melhores cumprimentos e votos de uma
boa viagem ao simpático companheiro de viagem, sua esposa e sua sogra. Sempre
ouvi por aí que “a palavra tem poder” e, de fato, as palavras do Sr. Roberto
afastaram por algumas horas qualquer sinal de doença. Relembrei muito uma das
primeiras colocações que aprendi no curso de Direito – as tais “relações
intersubjetivas”, famosas no contexto do ubi societas, ibi jus e que, tempos
depois, estiveram presentes nas linhas dos meus estudos sobre Gestão de Pessoas.
O aroma do sachê que ganhei do Sr. Roberto,
adquirido de uma das vendedoras que costumam entrar nos ônibus minutos antes da
partida, já passou, mas uma coisa que eu nunca vou esquecer é a lição que
recebi daquele homem que, despretensiosamente, sentou ao meu lado e deixou sua
boca falar do que seu coração estava cheio: amor.
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