segunda-feira, 2 de março de 2015

A Escravidão em Ipu


O Negro no Ipu

No nosso processo histórico a presença do negro foi significativa. Não se trata apenas de lembrar a escravidão. As fontes sobre a presença do negro na sociedade ipuense apontam para o fato de que existia uma gama muito superior de negros libertos, mulatos e pardos em relação ao número de cativos. Postular que a presença negra em nossa cultura foi pouco significativa, porque a escravidão não teve, entre nós, grande importância, nos coloca diante de uma questão perversa, que consiste em associar o negro à escravidão.
Na segunda metade do século XIX até antes da abolição, existia em Ipu um número bastante significativo de não brancos trabalhando como homens e mulheres livres.
Entre 1857/1858 existiam, segundo números oficiais, 784 escravos numa população de 17.420 habitantes, cerca de 4,5% da população. Em 1860 este número aumentou para 807 escravos. Em 1872 a cidade tinha 687 cativos e no ano seguinte este número subiu para 835.
Estas cifras revelam a existência de um número significativo de escravos na cidade de Ipu, mas, por outro lado, não revelam, por exemplo, a existência de um número muito maior de negros, pardos e mulatos não cativos.
Temos inúmeros exemplos de negros libertos que exerciam atividades em Ipu na segunda metade do século XIX. Eusébio de Sousa anota em um de seus trabalhos que em Ipu, um dos primeiros que descobriu minas de ouro foi um “Preto Velho”, natural de Minas Gerais, conhecido pelo epíteto de “Pai Flor” e “extraiu delas porções de elevado quilate, que vendia aos ourives da cidade e dava também a outras pessoas”. Eusébio de Sousa cita ainda o caso do negro Gabriel, supostamente nascido em Sobral e que constituiu família em Ipu e aqui morreu. Depois de correr mundo como escravo veio conseguir sua liberdade na Terra de Iracema. Ergueu em Ipu o primeiro e único hotel até o início do século XX que deram o nome, mais tarde, de Rendez-vous des amis (Encontro dos Amigos). Muito conhecido na cidade, seu nome completo era Gabriel de Saboya e Silva em função de ter sido escravo do Dr. José Thomé da Silva, juiz de direito da Comarca de Ipu em meados do século XIX.
Podemos citar ainda um último caso, a de Luzia Torquez, uma negra escrava que conseguiu a sua alforria antes do fim da escravidão. Muito conhecida na cidade, vendia seu corpo para conseguir sobreviver.

Negros no Ceará e em Ipu

Pesquisas mostraram que o número de cativos no Ceará girava em torno de 4% e 5% de sua população em meados do século XIX. Esta mesma cifra é aquela referente à cidade de Ipu no mesmo período. No entanto, cerca de 60,7% da população cearense, no início do século XIX era composta pela presença de afro-brasileiros. Supõe-se, portanto, que entre 40 a 60% da população Ipuense, em meados do século XIX, era composta de afro-brasileiros.
No censo de 1818, apresentado pelo governo provincial, 34% dos habitantes do Ceará reuniam os brancos, enquanto os pretos e mulatos livres somavam 56% e os índios 10% da população. Estes números pouco se alterariam posteriormente.
À medida que avançava o século XVIII e a ocupação do Ceará se efetivava, consolidou-se um espaço de trabalho que atraiu um contingente de homens livres, pobres, negros e pardos, vindos de outras províncias. Muitos se tornaram vaqueiros, trabalhando no regime de quarta, outros se tornaram moradores e agregados das fazendas de gado.
Em meados do século XVIII, com o surto da lavoura de algodão, acentuou-se uma demanda maior de mão-de-obra, configurando-se uma presença mais significativa de trabalhadores livres e, também, de escravos africanos. Na segunda metade do século XIX um novo surto da cotonicultura atraiu braços para o Ceará, em especial de escravos que vinham de outras províncias uma vez que o ano de 1850 marcou o fim do tráfico intercontinental de escravos. Será também nesta época que o Ceará irá exportar escravos para outras províncias, dentro do tráfico interprovincial.
Em Ipu o número de escravos cresceu após o fim do tráfico negreiro e isso está relacionado, primeiro, a um surto de crescimento econômico da região que teve no algodão seu principal produto. Se muitas regiões cearenses estavam exportando escravos para outras províncias, a cidade de Ipu passou a atraí-los, necessitada que estava de mão-de-obra. Porém, muitos negros libertos foram atraídos para a Terra de Iracema, e as explicações para isso são de ordem diversa.
Em primeiro lugar ocorria a notícia de que existiam minas de ouro em Ipu. A busca pelo Eldorado trouxe, sem dúvida, muitos aventureiros, escravos fugitivos e negros libertos. Não foi a toa que um “Preto Velho”, vindo de Minas Gerais descobriu e extraiu porções de ouro de elevado quilate, vendendo-o aos ourives da cidade e outras pessoas, das quais, ao “Padre Francisco Corrêa de Carvalho e Silva” que mandou “fazer as fivelas de seus sapatos”.
Em segundo lugar o próprio crescimento econômico da cidade atraiu braços livres e cativos. A exploração de algodão gerou postos de trabalho e renda para a cidade. Isso levou a uma dinamização das atividades. Havia demanda por serviços domésticos, carpinteiros, barbeiros etc.
Existiram, ainda nesse período, alguns engenhos de produção de aguardente e rapadura que demandavam também mão-de-obra. Certamente com a circulação de capitais teria surgido uma procura maior por artigos produzidos nos engenhos. Isso deve ter levado a um maior emprego do braço negro (livre e assalariado).
É justamente nesse momento que há um aumento significativo da população negra e afrodescendente, fruto, também, do crescimento vegetativo, isso pelo próprio aumento da importância da mão-de-obra e do elevado preço da “peça africana”.

O mundo dos escravos em Ipu

A ocupação do Ceará foi diferente daquela ocorrida em outras áreas do Nordeste açucareiro. Traduziu-se em um processo mais lento e coube à pecuária bovina abrir fronteiras e consolidar a sua ocupação. A criação do gado possibilitou a configuração de uma sociedade diferenciada quando comparada ao litoral açucareiro, exigindo pouca mão-de-obra. Todavia a introdução da mão-de-obra escrava não deixou de ocorrer e ser significativa. Assim como no Ceará, de um modo geral, a mão-de-obra se fez presente em todos os ramos de trabalho tanto no espaço rural quanto urbano. Os negros estavam presentes na pecuária, nas atividades agrícolas, em serviços especializados (pedreiros, barbeiros, etc.) e nos serviços domésticos, como escravos de aluguel ou de ganho.
As áreas onde predominava um maior número de escravos foram aquelas em que as atividades principais concentraram-se na pecuária e/ou na agricultura. Tais áreas possuíam um montante de mais de 500 escravos. A cidade de Ipu, entre 1857/1858, 1872/1873 e 1881 (períodos em que conhecemos as estatísticas de escravos), possuía mais de 600 escravos, chegando a ter em 1873 e 1881, respectivamente, 835 e 934 cativos.
É interessante mostrar que o número de escravo em Ipu aumentou em um momento em que na maioria das províncias cearenses o seu número diminuía. Uma das explicações para esse fenômeno diz respeito ao fato da Vila Nova do Ipu Grande está em pleno crescimento econômico.
A cidade de Ipu, na segunda metade do século XIX, se apresentava como um importante núcleo, considerado produtivo no Ceará, revelando a relativa importância da escravidão. É nesse período, por exemplo, que a produção do algodão do município dá um salto, em que são encontradas algumas minas de ouro e que a cidade ganha importância em relação a outras áreas da província. Ganha em 1840 a condição de Vila, é levada a cabeça de Comarca em 1848, a sede da freguesia de fato em 1844, quando o Padre Corrêa deixou a matriz de São Gonçalo e veio morar na sede da Vila, e de direito em 1883, ano do inicio da abolição no Ceará.
Analisando alguns dados que dispomos para a cidade de Ipu foi possível produzir uma analise sobre as ocupações dos escravos. Os dados dos cativos matriculados até 30 de junho de 1881 mostram que no meio rural existiam 450 cativos, sendo 300 homens e 150 mulheres, e que no meio urbano havia apenas 276, sendo 101 homens e 175 mulheres, 208 escravos não declararam a ocupação, sendo 83 homens 125 mulheres.
Pelos números acima existiam mais escravos no meio rural do que no meio urbano, o que evidencia uma maior importância das atividades econômicas ligadas à pecuária e as atividades agrícolas. Mas, em Ipu, é significativo o número crescente de escravos ligados às atividades do meio urbano.
Na maioria das províncias cearenses a quantidade de escravos do sexo masculino é bem maior do que do sexo feminino, sendo raro os casos em que os cativos do sexo feminino superam aqueles do sexo masculino. Em Ipu há, pelo menos para o ano de 1881, um equilíbrio entre os sexos, com 484 cativos homens e 450 cativos do sexo feminino, outro fato que pode explicar o crescimento do número de escravos na Vila de Ipu, uma vez que certamente o crescimento vegetativo fora significativo.
Para Ipu a documentação mostrou que em 1881 208 escravos são arrolados sem ter declarado a profissão, aparecendo na referida documentação a palavra “qualquer”. Neste universo existem muitos escravos, o que é bem provável, que desempenhavam mais de uma profissão. As mulheres exerciam o ofício de costureiras, rendeiras, fiandeiras e ainda prestavam serviços domésticos como cozinheiras, lavadeiras, amas-de-leite, etc., e em épocas de colheita poderiam ir para a lavoura. Na cidade a mão-de-obra cativa ajudava na constituição da renda familiar dos seus senhores, uma vez que era alugado e trabalhava como escravo de ganho e até, em alguns casos, como prostitutas. No meio urbano encontrava-se uma mão-de-obra mais especializada como pedreiros, marceneiros, alfaiates, sapateiros etc.
No meio urbano existia uma maior possibilidade do negro sociabilizar-se, ter mais liberdades de circulação e a possibilidade de construir família, tanto maior se ele fosse um escravo de ganho, exercendo, por exemplo, a atividade de vendedor ambulante, ficando como uma parte das vendas.

O Escravo no espaço social

Os novos estudos sobre a escravidão têm enfatizado a capacidade de negociação dos cativos frente ao sistema opressor, colocando por terra a noção de passividade do negro e a noção de coisificação (Reduzir o ser humano, ou elementos ligados a ele, a valores exclusivamente materiais). Era comum um escravo recorrer à justiça contra os castigos físicos impingidos (dados violentamente) por seus senhores. Os escravos faziam sua própria leitura da realidade e passaram a perceber que nela havia alguns mecanismos legais que podiam ser acionados a seu favor. Além das fugas, rebeliões, suicídios a que os escravos recorriam como formas de resistir a violência da escravidão, existiam outras práticas sociais buscadas por eles para minimizar a sua condição. Mesmo sujeitos as inúmeras limitações e imposições eles lutavam pela construção de determinados espaços de autonomia e liberdade.
Embora os escravos fossem considerados mercadorias que poderiam ser vendidas, eles eram passiveis de sentimentos, paixões, ódios, desejos e entendiam claramente sobre o momento de agir contra a sua condição de escravo e, assim, negociavam com seus senhores espaços de autonomia. Quando isso não era possível, ás vezes, as relações entre as partes tornava-se conflituosa.
Em Ipu poderíamos apresentar muitos exemplos que mostram muito bem este quadro apresentado. O exemplo mais conhecido é o do enforcamento do escravo Estevão. Ao que tudo indica era um cativo que tinha certa liberdade e era bem tratado. Pertencia ao Coronel Diego Lopes de Araújo Salles (que inclusive extraiu ouro de uma mina de Ipu usando o braço escravo). Em maio de 1845, Estevão assassinou com uma cacetada e facada o seu feitor Manoel de Carvalho Guedes Mourão, fato que se desenrolou no Sítio Conceição. Segundo os autos do processo, Estevão diz ter assassinado ao seu feitor pelo fato deste tê-lo surrado, o que competia apenas a seu senhor.
O caso mostra que, embora fosse escravo, Estevão compreendia que não podia ser surrado nem mesmo por seu feitor, a menos que ele estivesse seguindo ordens do seu dono. Este fato mostra que no entendimento de Estevão, ele poderia resistir se fosse castigado por alguém que não fosse o seu senhor ou que não tivesse ordens expressas para isso.
Uma das estratégias encontradas pelos escravos para resistir ou suportar sua condição foi a constituição de família, embora as limitações impostas para isso fossem de ordem diversa. Há vários casos em Ipu que mostra que escravos e ex-escravos buscavam formar famílias como forma de resistência ao sistema ou mesmo viver uma vida mais digna, o caso do escravo Gabriel é um deles. Dentro das negociações existentes entre os escravos e seus senhores, casar-se representava ganhar mais controle sobre o espaço de sua moradia. Os inventários Post Morten (Após a Morte) constituem uma chave para se conhecer melhor o universo do escravo e suas relações afetivas e, sabemos, eles existem em Ipu e podem lançar olhares sobre a escravidão.

Espaços da diversão e religiosidade dos negros

No inicio do século XX as famílias abastadas de Ipu reclamavam e condenavam a existência de Sambas frequentados por pessoas de “baixa condição”. Estes sambas eram frequentados pelos afro-brasileiros, descentes de escravos, mas também por mulatos, pardos e brancos pobres. Em todo o Ceará os códigos de postura municipais proibiam os sambas, e a reunião de pessoas, em particular de escravos.
O bumba meu boi foi outra realização festiva que unia e reunia escravos e ex-escravos, citado por Eusébio de Sousa.

Escravidão em Ipu: um tema rico

O pelourinho da Vila Nova de Ipu Grande ficava no atual Quadro da Igrejinha. Lá estava o mercado de escravos. Qualquer senhor que quisesse vender, trocar ou comprar escravos rumava para o Pelourinho. Lá também era o local de castigos de cativos rebeldes e palco das execuções de pena de morte.
Lá estavam os símbolos do poder temporal e espiritual: a cadeia e a igreja.
Foram utilizados escravos na extração do ouro de algumas minas de Ipu, nos engenhos locais, em serviços domésticos, na pecuária e na lavoura.
Em Ipu, cita Nertan Macedo, o Padre Francisco Corrêa era dono de escravos, e segundo Antonio Bezerra possuía o Pároco uma fábrica de moagem, possivelmente tenha sido senhor de muitos escravos.
Os Bessa Guimarães, originários de sobral, foram grandes proprietários de escravos na época. Da mesma forma o foi o Cel. Diego Lopes de Araújo Salles, proprietário do escravo Estevão. Diogo Salles, auxiliado por um mineiro conhecedor do ofício, vindo das gerais, atraiu, usando o braço escravo, 286 oitava de ouro de elevado quilate de minas de Juré. A extração de ouro naquelas minas foi abandonada em função do assassinato do Cel. Diogo por um dos seus escravos. Isso se deu pela falta de pessoa habilitada capaz de dirigir os trabalhos.
Muitas famílias ipuenses ainda hoje guardam a memória da escravidão. Histórias que passam de geração a geração. Ainda restam muitas casas no centro da cidade que atestam em seus porões as marcas da escravidão.
Roselany Rodrigues Tavares em monografia sobre a escravidão em Ipu levanta a questão de ter existido em São Mateus um quilombo, cuja memória foi cantada em música escrita por Zezé do Vale.  Em um dos trechos de sua melodia diz: ”Abre a tua porta nego, com ordem do delegado /Minha porta não se abre que Pai João tá incomodado/(...)Pelo sinal da santa cruz livre nos Deus,/ O barulho tá danado no quilombo do Mateus.
O mito da mulher que virou cobra por ter sido cruel com seus escravos atesta a riqueza do imaginário popular e a lembrança da escravidão. Reza a lenda que em meados do século XIX (provavelmente) Dona Ana Ferreira Passos, proprietária do Sítio são Paulo e dana de muitos escravos, falecera.
Algum tempo depois teria sido encontrada em seu túmulo uma imensa cobra. A cultura popular se encarregou em dar um tom profético ao ocorrido, alimentando a imaginação da população que logo associou o fato à suposta perversidade com que a referida senhora tratava seus escravos. Aquilo segundo o povo, teria sido castigo divino por maus tratos aos escravos que possuía. Muitas outras histórias lendárias criadas pelo imaginário popular associam sempre de forma macabra a vida da “perversa” dona de escravos à imagem da serpente, sempre associada a algo negativo, como é comum na tradição popular.

(Compilado do Site “Outra História”.).


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