A Escravidão em Ipu
O Negro no Ipu
No nosso processo
histórico a presença do negro foi significativa. Não se trata apenas de lembrar
a escravidão. As fontes sobre a presença do negro na sociedade ipuense apontam
para o fato de que existia uma gama muito superior de negros libertos, mulatos
e pardos em relação ao número de cativos. Postular que a presença negra em
nossa cultura foi pouco significativa, porque a escravidão não teve, entre nós,
grande importância, nos coloca diante de uma questão perversa, que consiste em
associar o negro à escravidão.
Na segunda metade do
século XIX até antes da abolição, existia em Ipu um número bastante
significativo de não brancos trabalhando como homens e mulheres livres.
Entre 1857/1858
existiam, segundo números oficiais, 784 escravos numa população de 17.420
habitantes, cerca de 4,5% da população. Em 1860 este número aumentou para 807
escravos. Em 1872 a cidade tinha 687 cativos e no ano seguinte este número
subiu para 835.
Estas cifras revelam
a existência de um número significativo de escravos na cidade de Ipu, mas, por
outro lado, não revelam, por exemplo, a existência de um número muito maior de
negros, pardos e mulatos não cativos.
Temos inúmeros
exemplos de negros libertos que exerciam atividades em Ipu na segunda metade do
século XIX. Eusébio de Sousa anota em um de seus trabalhos que em Ipu, um dos
primeiros que descobriu minas de ouro foi um “Preto Velho”, natural de Minas
Gerais, conhecido pelo epíteto de “Pai Flor” e “extraiu delas porções de
elevado quilate, que vendia aos ourives da cidade e dava também a outras
pessoas”. Eusébio de Sousa cita ainda o caso do negro Gabriel, supostamente
nascido em Sobral e que constituiu família em Ipu e aqui morreu. Depois de
correr mundo como escravo veio conseguir sua liberdade na Terra de Iracema.
Ergueu em Ipu o primeiro e único hotel até o início do século XX que deram o
nome, mais tarde, de Rendez-vous des amis (Encontro dos Amigos). Muito
conhecido na cidade, seu nome completo era Gabriel de Saboya e Silva em função
de ter sido escravo do Dr. José Thomé da Silva, juiz de direito da Comarca de
Ipu em meados do século XIX.
Podemos citar ainda
um último caso, a de Luzia Torquez, uma negra escrava que conseguiu a sua
alforria antes do fim da escravidão. Muito conhecida na cidade, vendia seu
corpo para conseguir sobreviver.
Negros no Ceará e em
Ipu
Pesquisas mostraram
que o número de cativos no Ceará girava em torno de 4% e 5% de sua população em
meados do século XIX. Esta mesma cifra é aquela referente à cidade de Ipu no
mesmo período. No entanto, cerca de 60,7% da população cearense, no início do
século XIX era composta pela presença de afro-brasileiros. Supõe-se, portanto,
que entre 40 a 60% da população Ipuense, em meados do século XIX, era composta
de afro-brasileiros.
No censo de 1818,
apresentado pelo governo provincial, 34% dos habitantes do Ceará reuniam os
brancos, enquanto os pretos e mulatos livres somavam 56% e os índios 10% da
população. Estes números pouco se alterariam posteriormente.
À medida que avançava
o século XVIII e a ocupação do Ceará se efetivava, consolidou-se um espaço de
trabalho que atraiu um contingente de homens livres, pobres, negros e pardos,
vindos de outras províncias. Muitos se tornaram vaqueiros, trabalhando no
regime de quarta, outros se tornaram moradores e agregados das fazendas de
gado.
Em meados do século
XVIII, com o surto da lavoura de algodão, acentuou-se uma demanda maior de
mão-de-obra, configurando-se uma presença mais significativa de trabalhadores
livres e, também, de escravos africanos. Na segunda metade do século XIX um
novo surto da cotonicultura atraiu braços para o Ceará, em especial de escravos
que vinham de outras províncias uma vez que o ano de 1850 marcou o fim do
tráfico intercontinental de escravos. Será também nesta época que o Ceará irá
exportar escravos para outras províncias, dentro do tráfico interprovincial.
Em Ipu o número de
escravos cresceu após o fim do tráfico negreiro e isso está relacionado,
primeiro, a um surto de crescimento econômico da região que teve no algodão seu
principal produto. Se muitas regiões cearenses estavam exportando escravos para
outras províncias, a cidade de Ipu passou a atraí-los, necessitada que estava
de mão-de-obra. Porém, muitos negros libertos foram atraídos para a Terra de Iracema,
e as explicações para isso são de ordem diversa.
Em primeiro lugar
ocorria a notícia de que existiam minas de ouro em Ipu. A busca pelo Eldorado
trouxe, sem dúvida, muitos aventureiros, escravos fugitivos e negros libertos.
Não foi a toa que um “Preto Velho”, vindo de Minas Gerais descobriu e extraiu
porções de ouro de elevado quilate, vendendo-o aos ourives da cidade e outras
pessoas, das quais, ao “Padre Francisco Corrêa de Carvalho e Silva” que mandou
“fazer as fivelas de seus sapatos”.
Em segundo lugar o
próprio crescimento econômico da cidade atraiu braços livres e cativos. A
exploração de algodão gerou postos de trabalho e renda para a cidade. Isso
levou a uma dinamização das atividades. Havia demanda por serviços domésticos,
carpinteiros, barbeiros etc.
Existiram, ainda
nesse período, alguns engenhos de produção de aguardente e rapadura que
demandavam também mão-de-obra. Certamente com a circulação de capitais teria
surgido uma procura maior por artigos produzidos nos engenhos. Isso deve ter levado
a um maior emprego do braço negro (livre e assalariado).
É justamente nesse
momento que há um aumento significativo da população negra e afrodescendente,
fruto, também, do crescimento vegetativo, isso pelo próprio aumento da
importância da mão-de-obra e do elevado preço da “peça africana”.
O mundo dos escravos
em Ipu
A ocupação do Ceará
foi diferente daquela ocorrida em outras áreas do Nordeste açucareiro.
Traduziu-se em um processo mais lento e coube à pecuária bovina abrir
fronteiras e consolidar a sua ocupação. A criação do gado possibilitou a
configuração de uma sociedade diferenciada quando comparada ao litoral
açucareiro, exigindo pouca mão-de-obra. Todavia a introdução da mão-de-obra
escrava não deixou de ocorrer e ser significativa. Assim como no Ceará, de um
modo geral, a mão-de-obra se fez presente em todos os ramos de trabalho tanto
no espaço rural quanto urbano. Os negros estavam presentes na pecuária, nas
atividades agrícolas, em serviços especializados (pedreiros, barbeiros, etc.) e
nos serviços domésticos, como escravos de aluguel ou de ganho.
As áreas onde
predominava um maior número de escravos foram aquelas em que as atividades
principais concentraram-se na pecuária e/ou na agricultura. Tais áreas possuíam
um montante de mais de 500 escravos. A cidade de Ipu, entre 1857/1858,
1872/1873 e 1881 (períodos em que conhecemos as estatísticas de escravos),
possuía mais de 600 escravos, chegando a ter em 1873 e 1881, respectivamente,
835 e 934 cativos.
É interessante
mostrar que o número de escravo em Ipu aumentou em um momento em que na maioria
das províncias cearenses o seu número diminuía. Uma das explicações para esse
fenômeno diz respeito ao fato da Vila Nova do Ipu Grande está em pleno
crescimento econômico.
A cidade de Ipu, na
segunda metade do século XIX, se apresentava como um importante núcleo,
considerado produtivo no Ceará, revelando a relativa importância da escravidão.
É nesse período, por exemplo, que a produção do algodão do município dá um
salto, em que são encontradas algumas minas de ouro e que a cidade ganha
importância em relação a outras áreas da província. Ganha em 1840 a condição de
Vila, é levada a cabeça de Comarca em 1848, a sede da freguesia de fato em
1844, quando o Padre Corrêa deixou a matriz de São Gonçalo e veio morar na sede
da Vila, e de direito em 1883, ano do inicio da abolição no Ceará.
Analisando alguns
dados que dispomos para a cidade de Ipu foi possível produzir uma analise sobre
as ocupações dos escravos. Os dados dos cativos matriculados até 30 de junho de
1881 mostram que no meio rural existiam 450 cativos, sendo 300 homens e 150
mulheres, e que no meio urbano havia apenas 276, sendo 101 homens e 175
mulheres, 208 escravos não declararam a ocupação, sendo 83 homens 125 mulheres.
Pelos números acima
existiam mais escravos no meio rural do que no meio urbano, o que evidencia uma
maior importância das atividades econômicas ligadas à pecuária e as atividades
agrícolas. Mas, em Ipu, é significativo o número crescente de escravos ligados
às atividades do meio urbano.
Na maioria das
províncias cearenses a quantidade de escravos do sexo masculino é bem maior do
que do sexo feminino, sendo raro os casos em que os cativos do sexo feminino
superam aqueles do sexo masculino. Em Ipu há, pelo menos para o ano de 1881, um
equilíbrio entre os sexos, com 484 cativos homens e 450 cativos do sexo
feminino, outro fato que pode explicar o crescimento do número de escravos na
Vila de Ipu, uma vez que certamente o crescimento vegetativo fora
significativo.
Para Ipu a
documentação mostrou que em 1881 208 escravos são arrolados sem ter declarado a
profissão, aparecendo na referida documentação a palavra “qualquer”. Neste
universo existem muitos escravos, o que é bem provável, que desempenhavam mais
de uma profissão. As mulheres exerciam o ofício de costureiras, rendeiras,
fiandeiras e ainda prestavam serviços domésticos como cozinheiras, lavadeiras,
amas-de-leite, etc., e em épocas de colheita poderiam ir para a lavoura. Na
cidade a mão-de-obra cativa ajudava na constituição da renda familiar dos seus
senhores, uma vez que era alugado e trabalhava como escravo de ganho e até, em
alguns casos, como prostitutas. No meio urbano encontrava-se uma mão-de-obra
mais especializada como pedreiros, marceneiros, alfaiates, sapateiros etc.
No meio urbano
existia uma maior possibilidade do negro sociabilizar-se, ter mais liberdades
de circulação e a possibilidade de construir família, tanto maior se ele fosse
um escravo de ganho, exercendo, por exemplo, a atividade de vendedor ambulante,
ficando como uma parte das vendas.
O Escravo no espaço
social
Os novos estudos
sobre a escravidão têm enfatizado a capacidade de negociação dos cativos frente
ao sistema opressor, colocando por terra a noção de passividade do negro e a
noção de coisificação (Reduzir o ser humano, ou elementos ligados a ele, a
valores exclusivamente materiais). Era comum um escravo recorrer à justiça
contra os castigos físicos impingidos (dados violentamente) por seus senhores.
Os escravos faziam sua própria leitura da realidade e passaram a perceber que
nela havia alguns mecanismos legais que podiam ser acionados a seu favor. Além
das fugas, rebeliões, suicídios a que os escravos recorriam como formas de
resistir a violência da escravidão, existiam outras práticas sociais buscadas
por eles para minimizar a sua condição. Mesmo sujeitos as inúmeras limitações e
imposições eles lutavam pela construção de determinados espaços de autonomia e
liberdade.
Embora os escravos
fossem considerados mercadorias que poderiam ser vendidas, eles eram passiveis
de sentimentos, paixões, ódios, desejos e entendiam claramente sobre o momento
de agir contra a sua condição de escravo e, assim, negociavam com seus senhores
espaços de autonomia. Quando isso não era possível, ás vezes, as relações entre
as partes tornava-se conflituosa.
Em Ipu poderíamos
apresentar muitos exemplos que mostram muito bem este quadro apresentado. O
exemplo mais conhecido é o do enforcamento do escravo Estevão. Ao que tudo
indica era um cativo que tinha certa liberdade e era bem tratado. Pertencia ao
Coronel Diego Lopes de Araújo Salles (que inclusive extraiu ouro de uma mina de
Ipu usando o braço escravo). Em maio de 1845, Estevão assassinou com uma
cacetada e facada o seu feitor Manoel de Carvalho Guedes Mourão, fato que se
desenrolou no Sítio Conceição. Segundo os autos do processo, Estevão diz ter
assassinado ao seu feitor pelo fato deste tê-lo surrado, o que competia apenas
a seu senhor.
O caso mostra que,
embora fosse escravo, Estevão compreendia que não podia ser surrado nem mesmo
por seu feitor, a menos que ele estivesse seguindo ordens do seu dono. Este
fato mostra que no entendimento de Estevão, ele poderia resistir se fosse
castigado por alguém que não fosse o seu senhor ou que não tivesse ordens
expressas para isso.
Uma das estratégias
encontradas pelos escravos para resistir ou suportar sua condição foi a
constituição de família, embora as limitações impostas para isso fossem de
ordem diversa. Há vários casos em Ipu que mostra que escravos e ex-escravos
buscavam formar famílias como forma de resistência ao sistema ou mesmo viver uma
vida mais digna, o caso do escravo Gabriel é um deles. Dentro das negociações
existentes entre os escravos e seus senhores, casar-se representava ganhar mais
controle sobre o espaço de sua moradia. Os inventários Post Morten (Após a
Morte) constituem uma chave para se conhecer melhor o universo do escravo e
suas relações afetivas e, sabemos, eles existem em Ipu e podem lançar olhares
sobre a escravidão.
Espaços da diversão
e religiosidade dos negros
No inicio do século
XX as famílias abastadas de Ipu reclamavam e condenavam a existência de Sambas frequentados
por pessoas de “baixa condição”. Estes sambas eram frequentados pelos
afro-brasileiros, descentes de escravos, mas também por mulatos, pardos e
brancos pobres. Em todo o Ceará os códigos de postura municipais proibiam os
sambas, e a reunião de pessoas, em particular de escravos.
O bumba meu boi foi
outra realização festiva que unia e reunia escravos e ex-escravos, citado por
Eusébio de Sousa.
Escravidão em Ipu:
um tema rico
O pelourinho da Vila
Nova de Ipu Grande ficava no atual Quadro da Igrejinha. Lá estava o mercado de
escravos. Qualquer senhor que quisesse vender, trocar ou comprar escravos
rumava para o Pelourinho. Lá também era o local de castigos de cativos rebeldes
e palco das execuções de pena de morte.
Lá estavam os
símbolos do poder temporal e espiritual: a cadeia e a igreja.
Foram utilizados
escravos na extração do ouro de algumas minas de Ipu, nos engenhos locais, em
serviços domésticos, na pecuária e na lavoura.
Em Ipu, cita Nertan
Macedo, o Padre Francisco Corrêa era dono de escravos, e segundo Antonio
Bezerra possuía o Pároco uma fábrica de moagem, possivelmente tenha sido senhor
de muitos escravos.
Os Bessa Guimarães,
originários de sobral, foram grandes proprietários de escravos na época. Da
mesma forma o foi o Cel. Diego Lopes de Araújo Salles, proprietário do escravo
Estevão. Diogo Salles, auxiliado por um mineiro conhecedor do ofício, vindo das
gerais, atraiu, usando o braço escravo, 286 oitava de ouro de elevado quilate
de minas de Juré. A extração de ouro naquelas minas foi abandonada em função do
assassinato do Cel. Diogo por um dos seus escravos. Isso se deu pela falta de
pessoa habilitada capaz de dirigir os trabalhos.
Muitas famílias
ipuenses ainda hoje guardam a memória da escravidão. Histórias que passam de
geração a geração. Ainda restam muitas casas no centro da cidade que atestam em
seus porões as marcas da escravidão.
Roselany Rodrigues
Tavares em monografia sobre a escravidão em Ipu levanta a questão de ter
existido em São Mateus um quilombo, cuja memória foi cantada em música escrita
por Zezé do Vale. Em um dos trechos de
sua melodia diz: ”Abre a tua porta nego, com ordem do delegado /Minha porta não
se abre que Pai João tá incomodado/(...)Pelo sinal da santa cruz livre nos
Deus,/ O barulho tá danado no quilombo do Mateus.
O mito da mulher que
virou cobra por ter sido cruel com seus escravos atesta a riqueza do imaginário
popular e a lembrança da escravidão. Reza a lenda que em meados do século XIX
(provavelmente) Dona Ana Ferreira Passos, proprietária do Sítio são Paulo e
dana de muitos escravos, falecera.
Algum tempo depois
teria sido encontrada em seu túmulo uma imensa cobra. A cultura popular se
encarregou em dar um tom profético ao ocorrido, alimentando a imaginação da
população que logo associou o fato à suposta perversidade com que a referida
senhora tratava seus escravos. Aquilo segundo o povo, teria sido castigo divino
por maus tratos aos escravos que possuía. Muitas outras histórias lendárias
criadas pelo imaginário popular associam sempre de forma macabra a vida da
“perversa” dona de escravos à imagem da serpente, sempre associada a algo
negativo, como é comum na tradição popular.
(Compilado do Site “Outra
História”.).
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