O Mistério do Amortalhado
Era uma noite fria e tenebrosa. A
pequenina cidade mergulhava num silêncio profundo, enquanto os moradores
fechavam as suas portas com medo da assombração. Era sexta-feira, 13. Corria um
boato de que estava aparecendo um AMORTALHADO. Era só o que faltava, em plena
década de 70, impossível acontecer, diziam os mais novos. Antigamente, falavam
os mais velhos, algumas damas da sociedade vestiam-se de amortalhado para
esconder um encontro secreto nas caladas da noite. Verdade ou mentira alguns
jovens afoitos e destemidos decidiram descobrir quem era o tal fantasma.
Reunidos no Bar Alvorada, bebendo uma geladinha, sorteavam qual seria o
valentão para sair em busca do terror da antiga taba dos Tabajaras. Até o
momento tudo era mistério mas os boatos continuavam. Nesta sexta-feira, Zeca
Bento fora escalado para vasculhar ruas, praças e bairros em busca do
desconhecido. Encheu-se de pinga e de valentia até ouvir as badaladas da meia
noite no relógio da Matriz. Zeca iniciou a sua jornada pela rua dos Canudos,
invocando a ousadia de Antônio Conselheiro que morou nesta dita cidade, como
Solicitador da Justiça e Advogado dos Pobres, antes de ser BEATO. Foi até o
açude da Lagoa e nada encontrou. Voltou pela ponte-seca e percorreu a rua da
Goela até alcançar a estrada do Cemitério. Com muita facilidade pulou a grade
de ferro e começou a desafiar as almas penadas do campo santo. Gritou bem alto
chamando o amortalhado mas a resposta foi silêncio dos túmulos e a frieza do
tempo. Desolado resolveu descer pelo Beco da Beinha, tentando investigar o
Quadro da Igrejinha. Quando se aproximou da ponte do Ipuçaba ouviu um ruído
estranho atrás de si: lepo-lepo-lepo. O medo o fazia parar por alguns momentos,
porém constatava que o barulho também parava. Ao recomeçar a caminhada a coisa continuava:
lepo-lepo-lepo. Zeca Bento encheu-se de coragem reforçou os pulmões e gritou a
toda altura: Peguei-te maldito! Virou-se e de repente e abraçou o vazio.
Novamente prosseguiu o seu destino e lá se ia o bicho atrás dele;
lepo-lepo-lepo. Só então o audacioso jovem descobriu que eram os seus próprios
passos que emitiam aquele som da japonesa pisando a lama. Ficou furioso com a
descoberta e ao transpor a ponte, arrancou os chinelos, jogou-os na correnteza
e seguiu viagem de pés descalços. Aqui e acolá encontrava um boteco semiaberto e enchia a
cara para renovar as forças e então pegar a marmota que assombrava sua pacata
terra natal. Já ia pra lá de Bagdá quando penetrou no bairro do Cafute. Bebeu
mais alguns goles de aguardentes na bodega do Neco e se mandou para a BICA DO
IPU, uma queda d'água emelhante a um “véu de noiva” citada no livro – Iracema,
de José de Alencar. Em silêncio, cambaleando conseguiu chegar ao sopé da serra,
mas foi impossível subir a íngreme ladeira e resolveu voltar. Parou por alguns
instantes e sentiu uma enorme frustração por não realizar a maior façanha da
sua vida. Com passos lentos e a cabeça pesada fez o retorno pelo bairro Reino
de França, lamentando a sua desdita e a sua luta inglória. Já era madrugada e
uma barra difusa tingia o céu de uma tênue claridade. Falava sozinho e apertava
os olhos para enxergar o caminho. Foi então que avistou ao longe uma sombra que
se movimentava. Incrédulo fitou o horizonte e pensou; será o Benedito?
Devagarinho deu alguns passos e já não havia mais dúvidas: era o amortalhado.
Ficou tenso e parado, mas a curiosidade o impulsionava para alcançar o mistério
que acabara de desvendar. Pensava com euforia: amanhã serei considerado o único
herói deste segredo. Saiu de mansinho, esgueirando-se pela cerca de melão São
Caetano e foi aproximando-se cautelosamente. Estava a poucos passos da visagem,
que tanto apavorava a decantada IPU, que dormia aos pés de Ibiapaba. E antes
que o danado fugisse deu um enorme salto pra cima da fera e falou baixinho:
“Peguei-te condenado!” Ouviu-se um grito de horror cortando o silêncio daquela
madrugada… Quando o sol clareou a terra, Zeca Bento foi socorrido pelos amigos
que o encontraram todo quebrado, com as roupas esfarrapadas, gemendo de dor, ao
lado de um burrinho que lhe aplicara um enorme coice ao ser confundido com o
temível amortalhado.
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