quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

O Mistério do Amortalhado


         Era uma noite fria e tenebrosa. A pequenina cidade mergulhava num silêncio profundo, enquanto os moradores fechavam as suas portas com medo da assombração. Era sexta-feira, 13. Corria um boato de que estava aparecendo um AMORTALHADO. Era só o que faltava, em plena década de 70, impossível acontecer, diziam os mais novos. Antigamente, falavam os mais velhos, algumas damas da sociedade vestiam-se de amortalhado para esconder um encontro secreto nas caladas da noite. Verdade ou mentira alguns jovens afoitos e destemidos decidiram descobrir quem era o tal fantasma. Reunidos no Bar Alvorada, bebendo uma geladinha, sorteavam qual seria o valentão para sair em busca do terror da antiga taba dos Tabajaras. Até o momento tudo era mistério mas os boatos continuavam. Nesta sexta-feira, Zeca Bento fora escalado para vasculhar ruas, praças e bairros em busca do desconhecido. Encheu-se de pinga e de valentia até ouvir as badaladas da meia noite no relógio da Matriz. Zeca iniciou a sua jornada pela rua dos Canudos, invocando a ousadia de Antônio Conselheiro que morou nesta dita cidade, como Solicitador da Justiça e Advogado dos Pobres, antes de ser BEATO. Foi até o açude da Lagoa e nada encontrou. Voltou pela ponte-seca e percorreu a rua da Goela até alcançar a estrada do Cemitério. Com muita facilidade pulou a grade de ferro e começou a desafiar as almas penadas do campo santo. Gritou bem alto chamando o amortalhado mas a resposta foi silêncio dos túmulos e a frieza do tempo. Desolado resolveu descer pelo Beco da Beinha, tentando investigar o Quadro da Igrejinha. Quando se aproximou da ponte do Ipuçaba ouviu um ruído estranho atrás de si: lepo-lepo-lepo. O medo o fazia parar por alguns momentos, porém constatava que o barulho também parava. Ao recomeçar a caminhada a coisa continuava: lepo-lepo-lepo. Zeca Bento encheu-se de coragem reforçou os pulmões e gritou a toda altura: Peguei-te maldito! Virou-se e de repente e abraçou o vazio. Novamente prosseguiu o seu destino e lá se ia o bicho atrás dele; lepo-lepo-lepo. Só então o audacioso jovem descobriu que eram os seus próprios passos que emitiam aquele som da japonesa pisando a lama. Ficou furioso com a descoberta e ao transpor a ponte, arrancou os chinelos, jogou-os na correnteza e seguiu viagem de pés descalços. Aqui e acolá  encontrava um boteco semiaberto e enchia a cara para renovar as forças e então pegar a marmota que assombrava sua pacata terra natal. Já ia pra lá de Bagdá quando penetrou no bairro do Cafute. Bebeu mais alguns goles de aguardentes na bodega do Neco e se mandou para a BICA DO IPU, uma queda d'água emelhante a um “véu de noiva” citada no livro – Iracema, de José de Alencar. Em silêncio, cambaleando conseguiu chegar ao sopé da serra, mas foi impossível subir a íngreme ladeira e resolveu voltar. Parou por alguns instantes e sentiu uma enorme frustração por não realizar a maior façanha da sua vida. Com passos lentos e a cabeça pesada fez o retorno pelo bairro Reino de França, lamentando a sua desdita e a sua luta inglória. Já era madrugada e uma barra difusa tingia o céu de uma tênue claridade. Falava sozinho e apertava os olhos para enxergar o caminho. Foi então que avistou ao longe uma sombra que se movimentava. Incrédulo fitou o horizonte e pensou; será o Benedito? Devagarinho deu alguns passos e já não havia mais dúvidas: era o amortalhado. Ficou tenso e parado, mas a curiosidade o impulsionava para alcançar o mistério que acabara de desvendar. Pensava com euforia: amanhã serei considerado o único herói deste segredo. Saiu de mansinho, esgueirando-se pela cerca de melão São Caetano e foi aproximando-se cautelosamente. Estava a poucos passos da visagem, que tanto apavorava a decantada IPU, que dormia aos pés de Ibiapaba. E antes que o danado fugisse deu um enorme salto pra cima da fera e falou baixinho: “Peguei-te condenado!” Ouviu-se um grito de horror cortando o silêncio daquela madrugada… Quando o sol clareou a terra, Zeca Bento foi socorrido pelos amigos que o encontraram todo quebrado, com as roupas esfarrapadas, gemendo de dor, ao lado de um burrinho que lhe aplicara um enorme coice ao ser confundido com o temível amortalhado.


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