terça-feira, 2 de dezembro de 2014


Em 1944, nas festividades do Cinquentenário da Estação, o prefeito Humberto
Aragão, proferiu o discurso de abertura na qual evoca em sua fala inicial a parte final do
discurso do Dr. Ibiapina em 1894, para depois seguir dizendo:
Pela primeira vez o gigante de ferro deslizou em direção á multidão [1894]
que ansiosa o esperava. Ei-lo que aponta Silvano lançando aos céus o fumo
pardecento. Um frêmito percorreu a massa humana que se acotovelava
olhando em direção ao “corte”, da entrada. Folguetes festivos espoucaram
(sic) nas alturas; a banda de música executou uma peça; romperam fraldas;
prolongaram-se aplausos! Benvindo o Progresso! Benvinda a Civilisação.7
No plano simbólico, a ferrovia passou a representar, no início do século XX, em
Ipu, a chegada do progresso e da civilização, e mesmo depois. Nesse período, isto é, nas
três primeiras décadas do século, constituiu-se um discurso de que a cidade já respirava os
ares do progresso material, da civilização.
Sem dúvida, a chegada da ferrovia ao pequeno povoado de Ipu – que contava em
1894 com uma população não superior aos 12 mil habitantes e em cuja área central
residiam não mais do que 4 mil almas – provocou algumas mudanças significativas. Veio
acelerar um crescimento econômico que já vinha ocorrendo desde pelo menos a segunda
metade do século XIX, embora de forma bastante lenta, é verdade.
A ferrovia contribuiu para o alargamento da malha urbana, para o incremento da
produção algodoeira local e para o desenvolvimento do comércio e da produção
agropecuária de Ipu e de regiões em sua volta como a Ibiapaba.
Não estamos preocupados em saber se o “progresso material” e a “civilização”
chegaram ao município, mas entender como a ferrovia foi importante para algumas
transformações significativas no âmbito local e para as pessoas que nela viviam.
Transformações de ordem, sobretudo sócio-econômicas e culturais.
Para parte da população, em especial para sua elite8 política e econômica, o
progresso e a modernidade chegaram ao município dentro daquele espírito da “inserção
compulsória do Brasil na Belle Époque”9. No plano simbólico e das representações sociais
era essa a “realidade”.
Ora, a força da representação se dá não pelo seu valor de verdade, isto é, o da
correspondência entre discursos e imagens com o real, mas por sua capacidade de se
substituir à realidade que representa. A representação é dotada de poder de mobilização e
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Revista Homem, Espaço e Tempo. Centro de Ciências Humanas da Universidade Estadual Vale do Acaraú/UVA. Ano II,
número 1, março de 2008. ISSN 1982-3800
capaz de produzir coesão social, reconhecimento e legitimidade sociais. Como bem
mostrou Chartier, as representações (coletivas) são matrizes de práticas que constroem o
próprio mundo social. Pensar o real como uma representação nos ajuda a fugir da clivagem
- que, segundo Chartier, muito tempo atravessou as ciências sociais - entre “a objetividade
das estruturas” que buscava reconstruir as sociedades como eram em realidade, e a
subjetividade das representações, ligada a uma outra história destinada aos discursos que
tinham existência em si mesmo, portanto, efetuada à distância do real.10
Significa dizer que, de um lado, havia a noção segundo a qual era possível
reconstituir as sociedades e a realidade tais como eram ou tinham sido. Dito de outra forma,
que era possível reconstituir o passado tal qual teria ocorrido. Para isso bastava manusear
documentos seriados, quantificáveis. De outro lado, havia a noção de que os discursos, os
enunciados tinham vida própria, desligado da realidade. Era como que uma outra realidade
paralela, sem ligação, portanto, com o mundo social. Tentar ultrapassar essa divisão – que
de uma forma mais simples seria eliminar a clivagem entre o real e o não real - segundo
Chartier, exige, em primeiro lugar, considerar os esquemas geradores das classificações e
de percepções, característicos de cada grupo, como instituições sociais, “incorporando sob
a forma de categorias mentais e de representações colectivas as demarcações da própria
organização social”. Isso implica, grosso modo, a considerar as representações como
matrizes de discursos e de práticas diferenciadas, isto é, que comandam atos que, têm como
objetivo a construção do mundo social e, como tal, a definição contraditória das
identidades, tanto a sua, como as dos outros11. Práticas e representações são, pois,
indissociáveis.
A ferrovia, grande invenção da Revolução Industrial foi capaz de tirar a Europa de
sua primeira grande crise econômica e contribuiu para a “grande expansão” capitalista,
numa marcha jamais vista até então só superada com as invenções da chamada Segunda
Revolução Industrial na fase imperialista do capitalista. Essa expansão extraordinária
contribuiu para a crença dominante no século XIX, na tradição das luzes do século anterior,
de que o mundo caminhava para o progresso material contínuo e linear, sem sobressaltos,
na crença da ciência, na razão humana, na civilização Ocidental “superior”, capaz de
destruir a “barbárie”. Todos os povos pareciam estar condenados ao progresso, ou pelo
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