segunda-feira, 3 de novembro de 2014


A segunda execução de pena de morte levada a effeito no Ipú recaio na pessoa de João Francisco Tavares, autor do homicidio praticado em Francisco Antunes da Fonsêca.
            Esse processo revestio-se de certas formalidades. Na sua marcha suscitaram-se alguns incidentes, protelando, de certo modo, o seu julgamento final, o que  attesta o largo periodo de sua conclusão, pois, commettido o crime no anno de 1843, somente teve o seu termo, com a execução da pena de morte imposta ao réo João Francisco, em 1855.
            Estudemos as peças desse antigo processo.
            Primeiramente, vejamos a petição de queixa que deu logar a sua formação:

«A Vossa Senhoria Illustrissimo Senhor Delegado de Policia deste termo, queixa-se Luiza Maria do Livramento, moradora no termo da cidade de Sobral, ora nesta villa, de José Miranda, branco, solteiro, morador neste termo e de João Francisco Jordio, preso na cadeia desta mesma villa, e o motivo de sua queixa passa a responder com toda a verdade.
No dia 2 de novembro de 1841, pelas sete horas da noite, estando o infeliz Francisco Antunes da Fonsêca, marido da queixosa, manso e pacifico em sua casa, batem-lhe na porta de traz, dizendo que queriam comprar uma garrafa de aguardente; e abrindo a porta o marido da queixosa, lhe disparam um tiro com o qual caindo, lhe deram mais três facadas; e no mesmo instante espirou!!... Não contentes os malvados com este assassinio, entraram na casa da queixosa e roubaram uma porção de fazendas no valor de 150$000, pouco mais ou menos. Passados alguns dias espalhou-se uma voz geral de ter sido autor de tão atroz delicto o primeiro querelado José de Miranda com outro malvado, o que então se ignorava o nome, porém a queixosa não tendo naquelle tempo certeza disso não procedeu contra elles assassinos, criminalmente. Agora, porém, que se tem descoberto, com verdade, que de facto foram os dois querelados referidos que perpetraram tal delicto, a queixosa na qualidade de mulher do assassinado Francisco Antunes da Fonsêca, firmada no disposto do art. 270 do regulamento n.o 120 de 31 de janeiro de 1842, vem perante Vossa Senhoria queixar-se dos mencionados assassinos José de Miranda e João Francisco, para o que sejam punidos com as penas do art. 192 do Codigo Penal com as circumstancias aggravantes do art. 16 §§ 4. 5. 9, 11, 12, 14, 15, 16 e 17 do mesmo codigo e art. 271, quanto ao roubo: para exemplo desses malvados e de outros semelhantes protesta a queixosa ser-lhes parte accusante. Portanto, pede a Vossa Senhoria admitta a presente queixa e provada esta, sejam os réos obrigados á prisão e  livramento, consevando-se na prisão o que se acha preso, passando-se as ordens necessarias para ser preso o que se acha ausente».
           
            Assignava esta petição, a rôgo da queixosa, João de Andrade Pessoa Anta, naturalmente filho ou qualquer cousa que o valha do coronel João de Andrade Pessôa Anta, victima, na capital, da Comissão Militar e executado em 1823, accusado de ter sido commandante geral das forças revolucionarias na cidade Granja, por occasião do movimento republicano que ficou conhecido na historia com o nome de Confederação do Equador.
            Recebida a queixa, instaurou-se o processo, sendo inqueridas cinco testemunhas.
            Serviram no mesmo como promotor interino Domingos Carlos de Saboya e escrivão Manuel Xavier Macambira.
            Foi esta a sentença do jury que condemnou o réo João Francisco a pena de morte:

«A vista da decisão do jury que achou o réo João Francisco Tavares incurso no crime de morte contra Francisco Antunes da Fonsêca, com as circumstancias aggravantes dos §§ 1, 5, 8 e 14 do art. 16 do Codigo Penal, condemno ao mesmo réo na pena de morte correspondente ao maximo do art. 192 do mesmo Codigo Penal. O escrivão o recommende na prisão em que se acha, pague o réo as custas em que o condemno. - Sala das Sessões do jury em Villa Nova do Ipú, 15 de setembro de 1845. FRANCISCO PAULINO GALVÃO».
           
Fôra o mesmo juiz que lavrára, annos antes, a sentença de morte contra o escravo Estevão.
            O réo intimado desta sentença protestou por novo julgamento, sendo submettido ao mesmo no anno seguinte, com este resultado:

«Conformando me com a resposta do jury aos quesitos propostos, condemno ao réo João Francisco Tavares na pena de morte correspondente o gráo maximo do art. 192 do Codigo Criminal e pague o réo as custas em que o condemno. Appello. Sala das Sessões do Jury da Villa Nova do Ipú, 28 de setembro de 1846. FÉLIX JOSÉ DE SOUZA».

            Era também juiz leigo.
            Nesse segundo julgamento occupou a cadeira da accusação o promotor publico da comarca dr. Domingos José Nogueira Jaguaribe, tendo o réo como defensor o cidadão Domingos José Pinto Braga Junior.
            Em gráo de appellação o processo dormia em cartorio, quando, em resposta a uma consulta feita pelo juiz de direito da comarca, o poder competente assim se expressou:

«Terceira secção - Rio de Janeiro - Ministerio dos Negocios da Justiça, em 4 de maio de 1850. Illmo. Exmo. Senhor. - Accuso a recepção do officio n.o 30 de 8 do mez proximo findo, que V. Exc. me dirigio, acompanhado da copia do que recebeu do juiz de direito da comarca do Ipú, expondo a duvida em que se acha sobre o procedimento que deve ter a respeito do processo de um réo, que existe em cartorio do escrivão do jury, visto que sendo o réo condemnado a pena ultima, e confirmada aquella sentença em 28 de setembro de 1846, em novo julgamento, para que protestára, não se havia tirado traslado dos autos e expedido appellação ex-officio na conformidade da lei; e Sua Magestade o Imperador, a  quem foi presente este negocio, manda declarar a V. Exc. que faça constar ao sobredito juiz de direito que deve immediatamente expedir a appellação para a Relação do districto, porque a esta compete decidir se a expiração dos fataes prejudica ao conhecimento da appellações officiaes, mandando V. Exc., outro sim, proceder a responsabilidade de quantos teem culpa desse escandalo; e dando conta especial a esta Secretaria de Estado desse processo. Deus guarde a V. Exc. - Eusebio de Queiroz Coutinho Mattoso Camara - Senhor Presidente da Provincia do Ceara».

            O então presidente Aguiar poz nesse officio o respectivo cumpra-se.
            O processo em traslado seguio para a Relação do disctricto, que era, a esse tempo, no Recife, e esta, pela maioria absoluta de seus pares, julgou procedente a appellação para mandar o réo a novo jury.
            Nesse terceiro julgamento, que veio a ter logar em 1852, o réo foi condemnado ainda à pena ultima, como se póde verificar da seguinte setença:

«Á vista da decisão do jury com que me conformo, condemno o réo João Francisco Tavares nas penas do art. 192, gráo maximo e o condemno tambem nas custas e appello. - Sala das Sessões do Jury no Ipú, em 13 de dezembro de 1852 - JOÃO QUIRINO RODRIGUES DA SILVA».

            Subio (...)[1] em gráo de recurso e a Relação do Recife confirmou a sentença.
            Desta vez a acusação do réo foi feita pelo dr. Paulino da (...), promotor publico da comarca.
            Em (...) agosto de 1854, o juiz de direito dr. João Quirino, o mesmo que proferira a terceira sentença condemnatoria, (...) o seu cumpra-se.
            Não foi interposto pelo réo o recurso de graça.
            Afinal, a 27 de fevereiro de 1855, pelas dez horas da manhã, cahia, no Ipú, a segunda e ultima victima da pena de morte, imposta pelo respectivo tribunal do jury.
            Como foi executada essa sentença são falhos os dados officiaes, é apenas confirmada, por certidão nos respectivos autos, pelo escrivão que nella funccionou, o cidadão Joaquim Dias Martins.
            Uma testemunha ocular, porém, dessa execução, e que ainda hoje vive na cidade, assim nol-a narrou:
            Dias antes da execução que, como ficou dito, foi a 27 de fevereiro de 1855, o réo que havia seguido para a capital afim de aguardar a decisão do recurso interposto ex-officio, chegava a então villa, escoltado por uma tropa de linha ao mando do official Negreiros, victima, annos depois, de horrivel desastre em Itamaraty, do Estado do Piauhy, morrendo queimado.
            O réo foi conduzido para o Oratorio levantado no edificio que servia de cadeia, pequena casa situada no largo da igreja-matriz, tendo como confessor (...) o padre Francisco Correia de Carvalho e Silva, que desempenhou, posteriormente, papel saliente nos destinos do Ipú e de quem nos occuparemos mais adiante.                
            No dia da execução, pela 8 horas da manhã, o réo sahio acompanhado do juiz, escrivão e tropa, em passeio pelas ruas da villa, dirigindo-se em seguida para o local onde fôra levantada a fôrca, precisamente em meio da praça da matriz, mas collocada de maneira que podesse ser divisada pelos demais angulos.
            Esta fôrca - diz o informante - foi preparada pelo carpina Antonio Pereira de Souza.
            O réo, ao chegar ao patibulo, mostrando-se corajoso, proferio algumas palavras protestando sua innocencia, dizendo mais ou menos o seguinte:
- Ahi fica quem fez a morte... Morro mas não declaro o nome do seu autor... Um cão (...) todos a elle...
            João Tavares - o condemnado - (...) baixo, cheio do corpo e typo mal encarado.
            Assistio aos seus ultimos momentos o padre Correia proferindo as palavras do Credo - Vida Eterna.
            O nosso informante não sabe quem foi o carrasco executor da sentença de morte do réo João Tavares, affirmando, entretanto, ter o mesmo vindo com a tropa de linha que o conduzia da capital, parecendo tratar-se do celebre Francisco Correia Pareça, o mesmo de que nos fala o dr. Paulino Nogueira em seu importante trabalho citado, e que se tornou respeitado no seu desgraçado officio, indo morrer depois no presidio de Fernando de Noronha. Isto é méra supposição do narrador pois o proprio dr. Paulino Nogueira, autoridade para nós venerada na historia do Ceará, diz que Pareça, embora emulo de Cavaco, outro carrasco celebre, fez onze execuções de pena de morte, sendo dez na capital e uma no Aracaty, não incluindo-o nas duas do Ipú.
            Era de praxe nas execuções de pena de morte requisitar-se um cirurgião para assistir ao acto e fazer no cadaver do executado o exame do costume. Nas duas execuções do Ipú não se sabe pela deficiencia de dados em quem recaio esse encargo, parecendo-o na pessoa do cidadão Antonio Bezerra de Hollanda, professor aposentado residente na villa. Segundo testemunho daquelles tempos esse senhor exercia o officio de curandeiro e era homem affeito a rabulice, tanto que no processo do escravo Estevão - o primeiro executado - figurou como curador ad litem.
            A execução de João Francisco Tavares, como era natural, impressionou, sobremodo, a população local. Os vexames foram maiores porque o réo negava peremptoriamente a sua co-autoria no crime pelo qual fôra condemnado a pena ultima, máo grado as provas do processo.
            Contam que no dia da execução a respeitavel senhora do juiz de direito da comarca prolator da sentença, dr. João Quirino Rodrigues da Silva, e que assistira o acto, após a sua consummação, como que allucinada, corrêra a casa do vigário Correia, indagando:
            - Padre, diga-me, padre, o homem, - referia-se ao réo - na sua confissão affirmou a sua autoria no crime?...
            O padre Correia, num silencio immutavel, apenas abrio os labios, pallidamente, sem articular, entretanto, uma só palavra.
            Esse gesto era muito significativo...




[1]Mais uma vez a página está rasgada.

P.S. escrito na Velha Ortografia.

Nenhum comentário:

Postar um comentário