A
segunda execução de pena de morte levada a effeito no Ipú recaio na pessoa de
João Francisco Tavares, autor do homicidio praticado em Francisco Antunes
da Fonsêca.
Esse processo revestio-se de certas
formalidades. Na sua marcha suscitaram-se alguns incidentes, protelando, de
certo modo, o seu julgamento final, o que
attesta o largo periodo de sua conclusão, pois, commettido o crime no anno
de 1843, somente teve o seu termo, com a execução da pena de morte imposta ao
réo João Francisco, em 1855.
Estudemos as peças desse antigo
processo.
Primeiramente, vejamos a petição de
queixa que deu logar a sua formação:
«A Vossa Senhoria Illustrissimo
Senhor Delegado de Policia deste termo, queixa-se Luiza Maria do Livramento,
moradora no termo da cidade de Sobral, ora nesta villa, de José Miranda,
branco, solteiro, morador neste termo e de João Francisco Jordio, preso na
cadeia desta mesma villa, e o motivo de sua queixa passa a responder com toda a
verdade.
No dia 2 de novembro de 1841,
pelas sete horas da noite, estando o infeliz Francisco Antunes da Fonsêca,
marido da queixosa, manso e pacifico em sua casa, batem-lhe na porta de traz,
dizendo que queriam comprar uma garrafa de aguardente; e abrindo a porta o
marido da queixosa, lhe disparam um tiro com o qual caindo, lhe deram mais três
facadas; e no mesmo instante espirou!!... Não contentes os malvados com este
assassinio, entraram na casa da queixosa e roubaram uma porção de fazendas no
valor de 150$000, pouco mais ou menos. Passados alguns dias espalhou-se uma voz
geral de ter sido autor de tão atroz delicto o primeiro querelado José de
Miranda com outro malvado, o que então se ignorava o nome, porém a queixosa não
tendo naquelle tempo certeza disso não procedeu contra elles assassinos,
criminalmente. Agora, porém, que se tem descoberto, com verdade, que de facto
foram os dois querelados referidos que perpetraram tal delicto, a queixosa na
qualidade de mulher do assassinado Francisco Antunes da Fonsêca, firmada no
disposto do art. 270 do regulamento n.o 120 de 31 de janeiro de
1842, vem perante Vossa Senhoria queixar-se dos mencionados assassinos José de
Miranda e João Francisco, para o que sejam punidos com as penas do art. 192 do
Codigo Penal com as circumstancias aggravantes do art. 16 §§ 4. 5. 9, 11, 12,
14, 15, 16 e 17 do mesmo codigo e art. 271, quanto ao roubo: para exemplo
desses malvados e de outros semelhantes protesta a queixosa ser-lhes parte
accusante. Portanto, pede a Vossa Senhoria admitta a presente queixa e provada
esta, sejam os réos obrigados á prisão e
livramento, consevando-se na prisão o que se acha preso, passando-se as
ordens necessarias para ser preso o que se acha ausente».
Assignava esta petição, a rôgo da
queixosa, João de Andrade Pessoa Anta, naturalmente filho ou qualquer cousa que
o valha do coronel João de Andrade Pessôa Anta, victima, na capital, da Comissão
Militar e executado em 1823, accusado de ter sido commandante geral das
forças revolucionarias na cidade Granja, por occasião do movimento republicano
que ficou conhecido na historia com o nome de Confederação do Equador.
Recebida a queixa, instaurou-se o
processo, sendo inqueridas cinco testemunhas.
Serviram no mesmo como promotor
interino Domingos Carlos de Saboya e escrivão Manuel Xavier Macambira.
Foi esta a sentença do jury que
condemnou o réo João Francisco a pena de morte:
«A vista da decisão do jury que
achou o réo João Francisco Tavares incurso no crime de morte contra Francisco
Antunes da Fonsêca, com as circumstancias aggravantes dos §§ 1, 5, 8 e 14 do
art. 16 do Codigo Penal, condemno ao mesmo réo na pena de morte correspondente
ao maximo do art. 192 do mesmo Codigo Penal. O escrivão o recommende na prisão
em que se acha, pague o réo as custas em que o condemno. - Sala das Sessões do
jury em Villa Nova
do Ipú, 15 de setembro de 1845. FRANCISCO
PAULINO GALVÃO».
Fôra o mesmo juiz que lavrára,
annos antes, a sentença de morte contra o escravo Estevão.
O réo intimado desta sentença
protestou por novo julgamento, sendo submettido ao mesmo no anno seguinte, com
este resultado:
«Conformando me com a resposta do
jury aos quesitos propostos, condemno ao réo João Francisco Tavares na pena de
morte correspondente o gráo maximo do art. 192 do Codigo Criminal e pague o réo
as custas em que o condemno. Appello. Sala das Sessões do Jury da Villa Nova do
Ipú, 28 de setembro de 1846. FÉLIX JOSÉ DE SOUZA».
Era também juiz leigo.
Nesse segundo julgamento occupou a
cadeira da accusação o promotor publico da comarca dr. Domingos José Nogueira
Jaguaribe, tendo o réo como defensor o cidadão Domingos José Pinto Braga
Junior.
Em gráo de appellação o processo
dormia em cartorio, quando, em resposta a uma consulta feita pelo juiz de
direito da comarca, o poder competente assim se expressou:
«Terceira secção - Rio de Janeiro
- Ministerio dos Negocios da Justiça, em 4 de maio de 1850. Illmo. Exmo.
Senhor. - Accuso a recepção do officio n.o 30 de 8 do mez proximo
findo, que V. Exc. me dirigio, acompanhado da copia do que recebeu do juiz de
direito da comarca do Ipú, expondo a duvida em que se acha sobre o procedimento
que deve ter a respeito do processo de um réo, que existe em cartorio do
escrivão do jury, visto que sendo o réo condemnado a pena ultima, e confirmada
aquella sentença em 28 de setembro de 1846, em novo julgamento, para que
protestára, não se havia tirado traslado dos autos e expedido appellação ex-officio
na conformidade da lei; e Sua Magestade o Imperador, a quem foi presente este negocio, manda
declarar a V. Exc. que faça constar ao sobredito juiz de direito que deve
immediatamente expedir a appellação para a Relação do districto, porque a esta
compete decidir se a expiração dos fataes prejudica ao conhecimento da
appellações officiaes, mandando V. Exc., outro sim, proceder a responsabilidade
de quantos teem culpa desse escandalo; e dando conta especial a esta Secretaria
de Estado desse processo. Deus guarde a V. Exc. - Eusebio de Queiroz Coutinho
Mattoso Camara - Senhor Presidente da Provincia do Ceara».
O então presidente Aguiar poz nesse
officio o respectivo cumpra-se.
O processo em traslado seguio para a
Relação do disctricto, que era, a esse tempo, no Recife, e esta, pela maioria
absoluta de seus pares, julgou procedente a appellação para mandar o réo a novo
jury.
Nesse terceiro julgamento, que veio
a ter logar em 1852, o réo foi condemnado ainda à pena ultima, como se póde
verificar da seguinte setença:
«Á vista da decisão do jury com
que me conformo, condemno o réo João Francisco Tavares nas penas do art. 192,
gráo maximo e o condemno tambem nas custas e appello. - Sala das Sessões do
Jury no Ipú, em 13 de dezembro de 1852 - JOÃO QUIRINO RODRIGUES DA SILVA».
Subio (...)[1] em gráo
de recurso e a Relação do Recife confirmou a sentença.
Desta vez a acusação do réo foi
feita pelo dr. Paulino da (...), promotor publico da comarca.
Em (...) agosto de 1854, o juiz de
direito dr. João Quirino, o mesmo que proferira a terceira sentença
condemnatoria, (...) o seu cumpra-se.
Não foi interposto pelo réo o
recurso de graça.
Afinal, a 27 de fevereiro de 1855,
pelas dez horas da manhã, cahia, no Ipú, a segunda e ultima victima da pena de
morte, imposta pelo respectivo tribunal do jury.
Como foi executada essa sentença são
falhos os dados officiaes, é apenas confirmada, por certidão nos respectivos
autos, pelo escrivão que nella funccionou, o cidadão Joaquim Dias Martins.
Uma testemunha ocular, porém, dessa
execução, e que ainda hoje vive na cidade, assim nol-a narrou:
Dias antes da execução que, como
ficou dito, foi a 27 de fevereiro de 1855, o réo que havia seguido para a
capital afim de aguardar a decisão do recurso interposto ex-officio,
chegava a então villa, escoltado por uma tropa de linha ao mando do official
Negreiros, victima, annos depois, de horrivel desastre em Itamaraty, do Estado
do Piauhy, morrendo queimado.
O réo foi conduzido para o Oratorio
levantado no edificio que servia de cadeia, pequena casa situada no largo
da igreja-matriz, tendo como confessor (...) o padre Francisco Correia de
Carvalho e Silva, que desempenhou, posteriormente, papel saliente nos destinos
do Ipú e de quem nos occuparemos mais adiante.
No dia da execução, pela 8 horas da
manhã, o réo sahio acompanhado do juiz, escrivão e tropa, em passeio pelas ruas
da villa, dirigindo-se em seguida para o local onde fôra levantada a fôrca,
precisamente em meio da praça da matriz, mas collocada de maneira que podesse
ser divisada pelos demais angulos.
Esta fôrca - diz o informante - foi
preparada pelo carpina Antonio Pereira de Souza.
O réo, ao chegar ao patibulo,
mostrando-se corajoso, proferio algumas palavras protestando sua innocencia,
dizendo mais ou menos o seguinte:
-
Ahi fica quem fez a morte... Morro mas não declaro o nome do seu
autor... Um cão (...) todos a elle...
João Tavares - o condemnado - (...)
baixo, cheio do corpo e typo mal encarado.
Assistio aos seus ultimos momentos o
padre Correia proferindo as palavras do Credo - Vida Eterna.
O nosso informante não sabe quem foi
o carrasco executor da sentença de morte do réo João Tavares, affirmando,
entretanto, ter o mesmo vindo com a tropa de linha que o conduzia da capital,
parecendo tratar-se do celebre Francisco Correia Pareça, o mesmo de que
nos fala o dr. Paulino Nogueira em seu importante trabalho citado, e que se
tornou respeitado no seu desgraçado officio, indo morrer depois no presidio de
Fernando de Noronha. Isto é méra supposição do narrador pois o proprio dr.
Paulino Nogueira, autoridade para nós venerada na historia do Ceará, diz que Pareça,
embora emulo de Cavaco, outro carrasco celebre, fez onze execuções de
pena de morte, sendo dez na capital e uma no Aracaty, não incluindo-o nas duas
do Ipú.
Era de praxe nas execuções de pena
de morte requisitar-se um cirurgião para assistir ao acto e fazer no cadaver do
executado o exame do costume. Nas duas execuções do Ipú não se sabe pela
deficiencia de dados em quem recaio esse encargo, parecendo-o na pessoa do
cidadão Antonio Bezerra de Hollanda, professor aposentado residente na villa.
Segundo testemunho daquelles tempos esse senhor exercia o officio de curandeiro
e era homem affeito a rabulice, tanto que no processo do escravo Estevão - o
primeiro executado - figurou como curador ad litem.
A execução de João Francisco
Tavares, como era natural, impressionou, sobremodo, a população local. Os
vexames foram maiores porque o réo negava peremptoriamente a sua co-autoria no
crime pelo qual fôra condemnado a pena ultima, máo grado as provas do processo.
Contam que no dia da execução a
respeitavel senhora do juiz de direito da comarca prolator da sentença, dr.
João Quirino Rodrigues da Silva, e que assistira o acto, após a sua
consummação, como que allucinada, corrêra a casa do vigário Correia, indagando:
- Padre, diga-me, padre, o homem, -
referia-se ao réo - na sua confissão affirmou a sua autoria no crime?...
O padre Correia, num silencio
immutavel, apenas abrio os labios, pallidamente, sem articular, entretanto, uma
só palavra.
Esse gesto era muito
significativo...
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