quarta-feira, 2 de julho de 2014

 o mar de gerardo

[a obra;
É este mar infinito! Como todo o bom mar luso, ele é infinito. Cair no regaço desse mar nas caravelas feitas dos verdes pinhos de Leiria, pela pena rubra segura nas mãos de Gerardo é redescobrir o mito, achar o encoberto e ver, nas rimas secretas de todos os tempos, um mundo poético disfarçado nas entrelinhas da história magna. Foi daí que surgiram as caravelas em pleno fim do mundo do século XX, foi do mar de Gerardo, ressuscitado das ondas-túmulo de Vasco de Ataíde, que o mito ganhou as retinas da contemporaneidade para que o verbo não-esquecer se tornasse o comum mantra dos que não tinham passado. Lembramo-nos, então, o horizonte é a casa dos mistérios do mundo, seguir na descoberta é a sina do homem: 'não importa chegar - o que importa é partir' (p. 30). 
Foi no partir que o sonho das navegações infantes inundaram a última década do segundo milênio cristão. Foi de lá das bandas de mil e quinhentos que o poeta dos Inhamuns trouxe a razão do mito cantada outrora por lusos ilustres do saudoso sangue portucalense. Um era aquele da eterna gentil alma e dos primevos barões até onde houvesse mundo. O outro é dos brasões e do grifo eternamente pousado sobre o padrão às margens do mar atlântico. De lá, viu o rei-poeta, nas táboas da Leiria, as caravelas sobre os domínios de neptuno latino. A matilha andou pela pele d'água achando as terras prometidas aos impérios, desde então, não se havia nada além do padrão a beira-mar e eis as caravelas sobre o verde do mar, procurando o mundo e de lá viram a onda ganhar ritmo de terra, de lá viram que 'o achamento foi o princípio do mundo' (p. 62).
Dos mares portugueses, viu-se o império aflorar na pele d'água, ganhando o verso do poeta das Peãs. O verso foi arriba da terra, ganhou o sertão dos filhos dos ilustres de além mar que varreram o nevoeiro por sobre as águas dos dilúvios para dilatar a Fé e o Império assim como canta Luís, poeta acima dos da Hélade e da Mantua. E foi aquele chamado Gerardo que trouxe a chave do poema de Camões, inventando o que está além dos seus sertões, 'cantando galope na beira do mar' (p. 63). 
[o poeta;
O espaço é o mundo que se abre para as possibilidades existentes nesse além mar dos mistérios, nas terras míticas, terras pertecentes ao Encoberto, retornando naquele nevoeiro de aurora. O mito do inventor dos mares se alicerça na vastidão dos desterrados resguardados nas ondas do mar. Eram aqueles capitães que a história se incumbiu de, no panteão da eternidade, vingar os nomes vindouros de seus descendentes, mas ainda vieram aqueles anônimo que descabem dos mitos e são do mar seus eternos inquilinos e a eternidade das ondas os juntou a matéria-prima mistificada ainda de lágrimas e de pinhos naufragados naquelas rochas do Cabo Verde. O mar os fez vastos, sem nomes e todos 'somos desde então / a nutrição desse oceano, nostrum mare, nutrido / dos nossos músculos, dos nossos ossos' (p. 69).
Desse mar, caminharam sobre as terra de além do mundo homens que a dividiriam em bulas e tratados, o rubro lenho das matas atlânticas tornar-se-á o alimento das vestimentas daqueles do velho mundo. Os passos silenciosos pela mata acompanhados pelo fulgor nativo escondido entre o sabiazal a fervilhar pelos céus daquela que o lenho sacro de Cristo batizaria de Vera Cruz. Nos tempos do rei venturoso, nasceu a terra que do outro lado do mundo também regeria o mar sem fim dos lusos de além da Taprobana. Caminharam por sobre a terra, que agora era Santa, aqueles que um dia devotariam hereditariamente as partes de uma estreita língua de terra perdida entre a prata hispânica e o mar sem fim português. Nasceriam, do útero-massapê da terra lambida, a cana que varava os litorais do nordeste e a riqueza que cresceria aos olhos do mundo para aquela que se chamaria Brasil pelo vermelho das árvores de fogo. 
Mas o mundo viu as terras descendentes das de Portucalense e veio, pelos mesmos mares de outrora, ditar-lhe novas línguas, novas ciências, novas plantas e na terra-massapê, pisaram os pés guerreiros de vários daqueles anônimos que a terra engoliria no pra sempre da dor pela luta nativa. Foi-se no sangrar que aquela terra sonhada surgiu e na triste aurora do tempo, se soubesse que sob o céu 'cada palmo de terra era um palmo de sangue' (p. 288). 
E desses palmos de sangue surgiu a pátria lavrada pelos poetas todos, de todos os caminhos até chegar a pena rubra de Gerardo lá nos Inhamuns. Eis o poeta nascido da terra que engendrou mitos vindos de além do mar, além dos padrões e das bandas do Ribatejo. O poeta que não cessou de assinalar em versos dos novos tempos, as ondas primeiras que desaguaram Peros guerreiros do venturoso. Fez nascer o Brasil, fruto do mar revoltoso comedor de anônimos, dos ares galegos suportados Entre-Douro-e-Minho. O inventor do mar fez surgir a América nos novos versos, poeta, sagrou os mares e sancionou na terra pisada por Martim que enfim 'criou-se a pátria / das criaturas vindas / de todas as terras' (p. 347). 
O inventor do mar fez dos verdes mares razão dessa terra repleta de mitos.


REFERÊNCIA

MOURÃO, Gerardo Mello. A invenção do mar. Rio de Janeiro: Record, 2007.


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