sexta-feira, 27 de junho de 2014


O S   N O R D E S T I N O S   N O
       R I O   D E   J A N E I R O
É dito que, o maior reduto de nordestinos fora do nordeste, é São Paulo. Eu tenho minhas dúvidas. Com certeza quem afirma isso, não conhece com profundidade certos redutos de nordestinos no Rio de Janeiro, como Rocinha, Rio das Pedras onde segundo o senso de 2002, 61.6% são do Ceará. A grande população da Baixada Fluminense estimado em aproximado seis milhões de habitantes e que mais de 50% são nordestinos ou descendentes. Com certeza também ainda não foi comer uma buchada, carne de sol com jerimum, comprar queijo de coalho no Centro Luiz Gonzaga de Tradições Nordestina; antiga Feira de São Cristóvão onde esse povo se encontra para dançar um forró e matar a saudade da terrinha. Não visitou a Praça Serzedelo Correia nos anos cinqüenta e sessenta aos domingos, onde a colônia do Ceará se reunia, era tão forte o contingente que a mesma passou há ser conhecida como praça dos cearenses.
Bom, mas isso são detalhes. O que precisa ser dito é que, cada nordestino aqui presente é um indivíduo único; com sua vida, com suas raízes e com motivos de ter vindo para cá, o porquê de não ter voltado já que nunca o esqueceu, já que a saudade lhe acompanha quase sempre por toda sua vida. Enfim, com sua saga, única e paralela há tantas outras. Cada um desses indivíduos que estão aqui vindos da Bahia, Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Piauí, Maranhão e principalmente do Ceará e da Paraíba, pois foram desses dois estados que mais migrantes vieram para o sudeste na década de cinqüenta. Há duas pequenas cidades nesses dois estados: Reriutaba no Ceará  e Cabaceira na Paraíba que mandaram tanta gente aqui para Rio de Janeiro e principalmente sem nem uma qualificação profissional, vinham quase sempre para a construção civil.
De Reriutaba saía um caminhão lotado todos os meses, - um pau-de-arara – e por sair, também chegavam todas as semanas, isso em menos quantidade. Porém, quase todos os sábados o trem trazia os cariocas, eram assim que eles eram chamados, mesmo que somente tivesse ficado aqui por alguns meses.  A chegada desses heróis á sua terra natal era uma festa; quase sempre eles pagavam aos maquinistas das velhas marias-fumaça para anunciarem suas chegadas, começava as mesmas a apitarem logo depois que saiam de Sininbú, hoje Amanaiara, isso dependendo do din-din que lhe era dado.
Esses homens construíram os arranha-céu de Copacabana, Ipanema, Leblon e tantos outros bairros. Hoje eles ainda estão aqui, não mais na construção civil, mais sim, nos hotéis, restaurantes e etc. Acredito que, 80% dos garçons cariocas são cearenses.
Em todos os lugares do Rio de Janeiro você encontra nordestino morando, porém seus grandes redutos são a Rocinha, Rio das Pedras, São Gonçalo, Niterói e Baixada Fluminense.
Há nordestinos que se destacaram em todos os setores da sociedade: nas artes, letras, esportes, ciência e tecnologia. Porém, essa parcela é muito pequena se comparado a grande massa que vive as margens dos benefícios da sociedade que eles tanto contribuem, são pessoas que cumprem rigorosamente com seus deveres e pouco sabe de seus direitos.
 E é desses que quero contar um pouco de suas histórias. Eles têm histórias parecidas, vem do mesmo mundo e tiveram a mesma escola; são em geral honestos e trabalhadores. São pessoas super-inteligentes, conheço um garçom que nunca cursou um colégio, é autodidata e poliglota, comunica-se em vários idiomas aprendidos na prática de seu serviço.
Dificilmente eles fazem independência financeira, somente alguns poucos; e por motivos que até eles mesmos desconhecem: é que, eles não se mudaram para cá, vieram apenas ganhar dinheiro para realizar pequenos sonhos, para fazer o que imaginavam que nunca faria lá: comprar uma moto, construir uma casa para seus pais. Ele trabalha um ano inteiro, juntando dinheiro apenas para ir á festa da padroeira de sua cidade. Ficam nesse ir e vir sem fim, enriquecendo apenas as empresas de ônibus.
Há grande verdade, é que, esses homens de quem falei, nunca saíram do seu nordeste; mesmo vivendo aqui por muitos anos, apenas seu físico está aqui, sua alma nunca saiu de lá. Eu tenho um amigo que vive aqui a mais de cinqüenta anos, é comerciante e até bem sucedido financeiramente isso se comparado a vida que ele lavava lá, constituiu família, esposa, filhos, netos; mas ele me confidenciou que. Apesar deste mais de meio século por aqui, acontece sempre com ele uma coisa muito estranha; depois de um dia exaustivo de trabalho em sua loja e ao chegar a sua casa tomar banho, jantar, ler os jornais do dia, ver televisão, vai dormir. E é ai que acontece o incrível: ao pegar no sono, ele se transporta em sonho para seu Ceará. Começa seu devaneio pelos Morrinhos Novos, lugar onde ele nascera e vivera sua infância e adolescência; continuando seu sonho, viaja por: Inhuçu, Carnaubal, São Benedito, Guaraciaba do Norte e até mesmo pela Macambira lugar onde viveram seus antepassados. Disse-me ele que, nesse quase meio século vivendo no sudeste, nunca sonhou em São Paulo , Belo Horizonte, Rio de Janeiro e nem mesmo em Nova Iguaçu onde mora. Outra coisa também acontece nos sonhos desse meu amigo: ele vai aos grandes acontecimentos de sua terra, vai aos grandes bailes, as festas religiosas e sempre muito bem vestido: terno completo, calça, camisa social, palitó e as vezes até colete e gravata; porém, quando ele olha para os pés, está descalço.
Isso prova a dificuldade que ele teve em sua terra para comprar um par de sapatos.
Ainda bem que esse sonho maluco agora deixou de perseguir esse meu amigo. Ele continua a sonhar com a terrinha, hoje ele sonha com ela até mesmo acordado, mas, sempre de sapatos; até porque aquele sonho não tinha  mais razão de ser, pois a primeira coisa que o migrante nordestino fazia ao chegar à cidade maravilhosa naquela época era comprar um terno azul-marinho ou marrom e um bom par de sapatos: DNB, ou Polar.
Porém, essas pessoas em sua maioria aqui, não se ressocializam vivem como estrangeiros dentro de seu próprio País. Não sabem quem os governam e se tratando de governo local, não sabe quem é o prefeito, o bispo, o juiz, o delegado de polícia, ás vezes nem mesmo o padre de sua paróquia. Muitas vezes até sabem os nomes dessas personagens; entretanto, nunca os cumprimentou e nem foi por eles cumprimentados. Vivem a margem dessa sociedade. Não participa e nem toma conhecimento sequer da festa da padroeira da paróquia em que reside; quando no seu nordeste era toda a razão de sua vida, trabalhava o ano todo para poder comprar uma roupa nova para o dia da festa. Aqui eles não tomam conhecimento dos eventos sociais; até mesmo as três grandes paixões do carioca: praia, futebol e carnaval. Eles não tomam parte; até torcem por algum time, - quase sempre o flamengo, - no entanto nunca vão ao Maracanã. A praia quando podem, vão á uma do interior, de preferência longe de alguma cidade. No carnaval vão acampar no mato perto de alguma cachoeira onde não ouça o som dos tamborins e assim eles se acham um pouco dentro da caatinga de seu nordeste.
Moram quase sempre nas cidades da periferia, quando tem carro vai passear na Paraíba, RG do Norte, Ceará. Todavia não sabe dirigir no próprio Rio de Janeiro.   Quando tem algo á resolver no centro da cidade, vai de coletivo ou chama alguém para levá-lo, isso é maioria, porém, há exceções.
Isso me fez lembrar uma piada que me contou um comerciante de Bom Jesus do Itabapuana no extremo norte fluminense. (Isso em plena ditadura militar.) Ele contou que, houve um concurso no Kennel Club, de Petrópolis; o cão vencedor recusou medalha, ração nobre e tudo que tinha direito. Então lhe perguntaram o que ele queria, respondeu: quero uma viagem á Argentina. Mas, por quê? Lá eu posso latir.
Esse migrante, paga impostos, cumpre com suas obrigações mas, por mais que se esforce sente sempre as margens da sociedade. Por mais bem vestido que ele esteja, sente-se sempre sem sapatos. E vive sempre querendo voltar para sua terra nem que seja apenas para ter o direito de latir: e seu uivo seja ouvido.

Do Livro: “Fragmentos de Uma Oficina Acadêmica”

De Amadeu Lucinda.

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