sexta-feira, 13 de junho de 2014


O MENINO QUE NÃO QUERIA SER POBRE
As brigas por terras têm sido uma constância em todas as épocas da humanidade. Em todo o Brasil, e em todo o Mundo, as brigas por terras sempre houve e sempre haverá.
Nas áreas urbanas, os vizinhos brigam, e às vezes até terminam nos tribunais por alguns centímetros, que um entende que ao construir o outro penetrou em seu lote. Nas propriedades rurais, brigam-se por alguns metros que o proprietário entende que lhe foi avançado quando da demarcação e em muitas ocasiões causando mortes.
Nos estados brigam-se por alguns quilômetros, por entenderem seus governantes que seriam fontes de impostos e de rendas para eles.
Os países brigam por grandes e pequenas possessões para explorarem riquezas minerais, como petróleo, ouro, manganês e outros. Essas disputas quase sempre acabam em guerras.
No Brasil, existem muito desses litígios. Em todo seu território, a maioria deles apesar de acabar em mortes, nunca se tem conhecimento, há não ser quando por sua dimensão ou por sua repercussão internacional, como os casos de São Félix da Cachoeira, e de Carajás no sul do Pará. Mais casos menores acontecem todos os dias em algum lugar deste nosso grande Brasil.
Em 1948, morava no Sítio Convento, no município de Guaraciaba do Norte no estado do Ceará, umas posseiras: eram as “pirócas”, assim que elas eram conhecidas por todos, o porque deste nome não me perguntem porque não saberia responder. Eram mulheres muito trabalhadoras, honestas e valentes, viviam trabalhando em seu sítio junto com seus filhos enquanto seus maridos estavam em viagem.
No sítio, elas cultivavam cana-de-açúcar, mandioca, feijão, milho, fumo, batata-doce e outras, como frutas, elas tinham laranja, banana, abacate, limão, jaca, manga e etc.
No sítio vizinho e em maior escala, cultivava os mesmos produtos, um ricaço do sertão. Era o Tomé Farias, morava em Reriutaba e tinha o sítio na Serra para passar o verão. Era comum os ricos do sertão terem sítios na Serra e fazer destes suas residências de veraneio, uma vez que o clima da Serra é muito bom, sendo o refúgio deles fugindo daquele Sertão escaldante no verão.
Em agosto daquele ano, numa sexta-feira, o Tomé Farias chegou com seus seguranças, que lá no Nordeste eram chamados de jagunços, eram em números de dez ou doze. O Tomé mandou que os mesmos alterassem as marcas que limitava as duas propriedades, e fez com que seus comandados mudassem as cercas divisórias e avançando uns dois ou três metros no sítio delas. Elas não aceitaram e reagiram com energia.
Apesar de seus maridos não estarem presentes e elas em desvantagem em números de pessoas e em qualidade, uma vez que elas todas eram mulheres e seus filhos adolescentes, enquanto que eles eram homens fortes, trabalhadores braçais que apesar de ano terem prática de brigas, elas também não, e estavam em desvantagem em quantidade.
Eles eram uns doze, como já disse e elas eram sete mulheres e cinco adolescentes.
Começou uma briga, talvez a mais feia que já aconteceu naquelas paragens, não havia armas de fogo. As armas eram foices, facões, enxadas e paus que eram tirado das cercas.
Ali começou uma batalha; a coisa ficou feia. Logo no começo da batalha, um dos jagunços feriu mortalmente um rapazinho. Era filho da Hernestina, mulher, que quando viu seu filho ferido, virou uma fera. Num relance de segundo, tomou a foice do cabra e lhe desferiu tamanho golpe que o mesmo caiu sem vida no chão, um outro veio em seu socorro e ela também o matou.
Pessoal, a briga não demorou mais de uma hora, até porque se demorasse mais não ia sobrar ninguém.
Depois da hora da briga, tinha oito mortos e os demais todos feridos, ninguém saiu ileso daquele episódio. Foi preciso um caminhão para levar os corpos para a delegacia de Guaraciaba do Norte. Os mortos foram quatro de cada lado. Um jurista que compareceu na delegacia disse: “Não podemos abrir inquérito e nem processar ninguém, porque o que houve aqui não foi uma briga. O que houve aqui foi uma batalha, só se convocarmos um tribunal de guerra”.
Contei para vocês essa história para falar de um litígio de verdade: um caso inusitado. Pelo menos, eu não tenho noticia de outro caso igual em todo mundo.
É um litígio ao contrário, é uma zona litigiosa que fica na divisa dos estados Piauí e Ceará. Visualizando o Atlas do Brasil, vocês vão encontrar, entre estes dois estados, uma zona litigiosa; fica na Região Noroeste do estado do Ceará. A região é tão pobre que ninguém quer assumir. Quando surgem alguns problemas, o prejudicado vai prestar queixas às autoridades do Piauí, estes dizem que eles eram do Ceará e quando iam às autoridades cearenses, estas diziam que eles eram do Piauí. Assim vivia aquela gente, suas terras não tinham registro e nem um cartório, portanto não pagavam impostos. As pastagens eram comuns, não havia divisórias de fazendas, o gado e as criações de cabras e ovelhas eram comuns, conhecendo-se de quem eram as rezes apenas, porque eram marcadas a fogo antes de soltá-las. E, às cabras, eram feitas marcas nas orelhas, com um canivete quando renascidos e depois soltos.
O Nordeste é cheio de contrastes. Tem várias regiões distintas entre si, médias, pobres e abaixo da zona de pobreza.
Região rica: sul da Bahia; zona do cacau; zona da mata ou açucareira, que vai de Sergipe ao Rio Grande do Norte, sempre ladeando o litoral. Região média: o Cariri, as zonas serranas, Araripe, Borborema, Apody, Ibiapaba, Baturité e outras. Zonas pobres: os serões, as caatingas... Zonas abaixo da pobreza: a Macambira. Esta é a menor de todas as regiões que estão lendo, estão vendo ou ouvindo falar, pela primeira vez.
Ela não é cortada por nenhuma estrada federal e nem estadual, não é cortada por nem um rio permanente. Não tem nem uma cidade e nem ao menos um povoado. As trilhas que unem aqueles moradores ao mundo são accessíveis apenas a jumentos e burros ou cavalos.
Os moradores daquela região vivem como nativos: não é raro ver-se homens com quarenta anos ou mais que nunca viu um automóvel ou um trem.
Quando o ano é de bom inverno, há muita fartura, principalmente de milho, feijão, melancia e abóbora, que lá é chamada de jerimum. Estes dois últimos produtos se perdem todo na própria roça, pois não havendo estradas para escoar, tornou-se inviável transportá-los em lombo de mulas. Porque uma carga de melancia só porta oito unidades, não compensa. Há muitas abelhas, portanto mel silvestre é abundante. Também tem muita caça: inhambu, jacu, juriti, avoante, seriema, preá, mocó, cutia, veado, tatu e também tem onças.
Na época da seca, a coisa muda; as caças somem, as abelhas, por não haver floradas, não produzem mel; as águas somem. Somente agora o que tem em abundância são as cobras.
Uma vez, conversando com um garoto, filho de um nativo, ele me disse que, quando ia diariamente buscar água em uma velha cacimba que ainda tinha secado e que ficava a seis quilômetros de sua casa, seu divertimento era matar cobras no caminho e que todos os dias ele as matava. Só um dia matara oitenta cascavéis, tirou-lhes o maracá e guardou estes como troféus (maracá é uma espécie de chocalho que a cascavel tem na ponta da calda com várias rugas que, segundo a crença dos nativos, cada ruga é um ano de vida).
A mortandade infantil é muito grande naquela região, mais nos recém-nascidos, uma vez que os partos são feitos sem a menor noção de higiene, sendo muito grande a incidência de tétano umbilical, que lá é chamado do mal dos sete dias; é o tempo máximo que aquela criança vive e morre com grande desidratação, com a moleira e os olhos tão fundos que é um quadro muito triste de se ver.
Aquela gente abandonada, nunca viram alguém com curso superior, a não ser um padre, algumas vezes e à distância. Nunca viram um médico ou um advogado, imaginem então um juiz. Portanto, imaginem vocês a noção de Justiça que tem aquela gente. Se eu escrevesse como eles fazem justiça, quais formas e como fazem, dariam um livro.
Foi naquela região, que nem sei se é do Piauí ou do Ceará, que nasceu o nosso personagem. Ele dizia que era cearense, mas eu sempre lhe dizia que era ele piauiense.
O seu gentílico era tão contravertido, quanto sua região. Só sei que ele era macambireiro. Seu nome era Valdivino e seu pai era vaqueiro. O vaqueiro daquela região não é empregado de ninguém; ele vive tomando conta de animais de diversas pessoas sem vínculo empregatício. Ele é autônomo; cuida de algumas vacas de um, outras de outro, algumas dezenas de cabras de outro. O trabalho consiste em recolher as vacas paridas no curral e as cabras ao chiqueiro. Por este serviço, ele ganha assim: de cada quatro bezerros que nascem, ele ganha um. Isso também para os cabritos. Estes eram abatidos ainda pequenos para manutenção da casa, os bezerros ele vendia para o próprio dono e acabava ficando sem nada além do trabalho. Com o dinheiro dos bezerros, ele comprava roupas, sabão, querosene, sal e outras coisas que lá não produzem.
O Valdivino era um herói, pois tinha sobrevivido, quando a maioria das crianças que nascem por lá não ultrapassam os sete dias de vida. Assim acontecera com os seus irmãos, seus primos e tantos outros.
Valdivino, tendo nascido em meio a tanta miséria e ainda por castigo em criança assistira a uma grande seca; naquela época ele viu a miséria se multiplicar, viu o gado morrer, junto a outros tantos animais e também seres humanos. Ele mesmo e seus pais só não morreram, porque apelaram para a comida braba (que é polvilho tirado da própria macambira e da mucunã, que são produtos de uma toxidez tão forte que para ser consumido pelo ser humano, tem que ser lavada à nove águas).
Ele jurou que quando crescesse alguma coisa teria de fazer para não ser pobre; esta palavra lhe apavorava.
Quando ficou rapaz, viajou para o Rio de Janeiro, somente assim ele teria a oportunidade de deixar a pobreza.
Ao chegar da viagem, foi servir ao Exército. Estava servindo, quando houve uma convocação em seu quartel para uma força da paz, que iria para o Egito, convocados pela ONU, para proteger o Canal de Suez - era uma força tarefa e que iria receber soldos em dólares. Valdivino viu ali sua chance de não mais ser pobre.
Engajou na força tarefa e focou alguns anos por lá.
Nunca foi a uma boate, nem mesmo a um cinema, porque isso fazia gastar alguns cents de dólares. Aos domingos, seus amigos iam se divertir, e poder esquecer por alguns instantes a Pátria, a família e seus amigos. O valdivino não. Ele ficava com suas lembranças de sua infância lá na Macambira, onde se divertia sem gastar nada: o divertimento dele e de seus amigos, quando crianças lá na Macambira, era, aos domingos, saírem pelo campo, montados a cavalos em pêlo (sem cela), brincando de vaqueiro, correndo atrás e derrubando garrotes, que nem sabiam de quem eram. Também se juntavam muitos garotos e iam tirar mel, como já disse que era abundante, Cada um colocava uma cabaça de colo nos ombros e levavam um machado e uma foice, saiam à procura de abelhas. As abelhas eram urucu, jandaíra, munduri, tubiba, canudo, jati, maça-bonita, arapoá e outras.
O mel mais doce era o jatí, mas o mais saboroso era o munduri. Mas eles tinham outro desafio: duas destas abelhas não entregavam o mel com muita facilidade, eram muito valentes, a tubira e o arapoá. Era um teste de coragem ver quem era valente para tirar mel de uma tubira.
Com estas e outras lembranças, ele passava folgas e ia empurrando o tempo com a barriga, também comprara um rádio receptor de longo alcance, pois com ele podia sintonizar as rádios o Brasil, a rádio do comércio do Recife que o locutor ao dar seu prefix, o fazia em vários idiomas, dizendo: “Pernambuco falando para o mundo, esta é a Radio Jornal do Comércio, a voz mais potente do Brasil”, e também a rádio Tupi do Rio de Janeiro, que o locutor dizia: “Com duzentos quilowatts na antena, não há distância que nos separem”.
Era assim que ele ia driblando o tempo, quando se aproximou de seu regresso, ele comprou alguns tapetes percas e também um relógio Rolex, já era um bom sinal; um pobre nunca teria um Rolex...
Ao se desengajar do exército, o Valdivino voltou ao Brasil e foi para a Baixada Fluminense, onde ele tinha alguns parentes. Um desses parentes era um pequeno comerciante e tinha várias filhas. Eram moças muito bonitas. O Valdivino namorou uma delas e já ia ficar noivo, quando lembrou que ela tinha o que para ele era o maior defeito: era pobre... não dá. Esta palavra, só em pensar, ele entrava em pânico, pensava no seu passado e a jura que tinha feito de um dia deixar de ser pobre.
Nessa ocasião, ele conheceu uma viúva que não era feia e tinha a maior qualidade, visto pelo prisma do Valdivino. Ela tinha quatro casas muito boas e alugadas no centro daquela cidade. Começaram a namorar e em poucos dias estavam casados. Aí, Valdivino vendeu os tapetes que tinha trazido do Oriente Médio, também vendeu o relógio Rolex e juntou os dólares. Vendeu também o rádio de longo alcance, afinal ele não precisava mais ouvir A VOZ MAIS POTENTE DO BRASIL. Agora, ele estava NO Brasil. Juntou seus dólares, o dinheiro da venda dos tapetes, do rádio, do relógio, dos aluguéis das casas d’agora sua esposa e comprou um terreno num subúrbio daquela cidade e construiu dez casas e as alugou.
Agora, juntando os aluguéis das casas que a viúva lhe dera, mais as que ele construiu, ele já obtinha uma renda mensal considerável; juntava todo este dinheiro e, todos os meses, construía ou comprava mais uma casa.
Confessou entrar muito dinheiro de aluguéis e outras rendas. O Valdivino, na ânsia de não ser pobre, passou a esquecer do que havia sofrido em sua Macambira e esquecia que aqueles seus inquilinos eram pessoas que estavam chegando da Macambira e que ainda não tinham ido ao Egito e, talvez, nunca iriam, por falta de oportunidade. Quando um inquilino dele atrasava o aluguel, ele o despejava e, não raro, tomava-lhe os móveis. Uma vez, um inquilino ficou desempregado e sua mulher ganhara neném e não podendo pagar o aluguel, o Valdivino tomou inclusive o berço do recém-nascido.
Mais o Valdivino não estava nem aí. O caso dele era deixar de ser pobre. Imaginem vocês agora! Este pai de família, que foi só Deus sabe para onde, sem dinheiro do aluguel e agora também sem berço de seu filho.
Um dia, ele pensou em ir a Macambira, ver se as coisas lá haviam mudado e também se ainda tinha algum parente por lá. Refletiu: quanto eu vou gastar para ir lá? E qual o retorno? O que eu vou gastar não é muito, mas de retorno zero: só voltarei àquela terra, quando eu tiver certeza de que nunca serei pobre.
Como esta certeza o egoísta nunca o tem, o Valdivino nunca voltaria à sua Macambira. Como vivia sempre construindo, ele, já com mais de trinta casas alugadas, resolveu comprar um carro, para transportar o material de construção. Comprou uma velha camionete. Mas, analisando que a mesma para andar tinha que por gasolina, vendeu e comprou uma carroça e uma mula, esta era movida a capim e este combustível ele colhia nos brejos à noite.
Resolveu ser comerciante, uma vez que lhe disseram que era uma fórmula mais rápida de se ganhar dinheiro e, conseqüêntemente, deixar de ser pobre.
Montou um grande armazém e uma padaria dentro do próprio mini-mercado. A freguesia era grande, já que o bairro em que ele se estabeleceu era muito populoso. As férias da casa eram cada vez maiores. Um dia, as caixas com muito dinheiro, seu estabelecimento foi invadido por seis assaltantes, que não só levaram todo dinheiro, como também algumas máquinas, cortadores de frios, calculadoras e até um computador.
Valdivino ficou tão possesso que, no outro dia, anunciou o estabelecimento e o vendeu. Disse: “Meu negócio é imóvel; casa ninguém rouba e, quando o inquilino não paga, eu mando tomar tudo que ele tem”. Pensando assim, com o dinheiro da venda construiu mais quinze casas e as alugou. Ele, nessas alturas, já tinha mais de sessenta casas alugadas. Então pensou: “já posso comprar um veículo para meu transporte”. Vendo qual era o veículo mais econômico, optou por uma moto.
Só que ele comprou uma moto usada, numa vez que era mais barato. Acontece que o Valdivino não tinha prática de moto e aquela que ele comprou estava ruim de freio; era muito velha. Também pelo preço que pagou não dava para exigir freio, não.
No primeiro cruzamento que ele foi atravessar, a moto, por não ter freios, não conseguiu parar e foi se arrebentar debaixo de um ônibus. Foi um acidente muito feio. O ônibus lhe estraçalhou uma perna, tendo de ser amputada.
Dava pena ver o Valdivino com aquelas muletas indo atrás de seus inquilinos, mas não pensem que ficou triste. Não. Ele até falava com certo orgulho que não tinha gastado nada. Toda despesa foi da empresa de ônibus que pagou.
Fumava muito. E começou com uma tosse muito forte. Alguém sugeriu que ele fosse ao médico, mas ele nunca fizera um plano de saúde, portanto ir ao médico significava que tinha que gastar dinheiro e isso ele não fazia nem por um decreto.
Então foi em uma farmácia do bairro e consultou com o balconista, este tinha guêlta que um vendedor de um laboratório tinha lhe incumbido de vendê-las. Disse: “Tenho um remedinho aqui que é tiro e queda nessa tosse”.
Acontece que o Valdivino estava com enfisema pulmonar e com aquele remédio só veio a piorar, agravar seu estado. Dias depois, foi internado em um hospital-escola de uma faculdade, mas já era tarde. Poucos dias depois, veio a falecer no mesmo hospital mais pobre de que quando ele vivia na sua Macambira. Lá, pelo menos, ele tinha família e amigos. As casas agora já eram mais de cem, com exceção das que ele tinha recebido da viúva, ficaram todas para o Estado, uma vez que ele, para não gastar dinheiro, nunca as legalizou.
Pobre Valdivino, que Deus tenha pena de sua alma, pois ele também foi vítima, vítima de uma falta de educação, vítima de uma cultura.
Do Livro: “O Anjo da Noite e Outros Contos” de Amadeu Lucunda

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