sábado, 24 de maio de 2014

INTRODUÇÃO


O espírito de fé e a instauração religiosa da nossa gente não tem sido propícios as investidas dos inimigos da Igreja e, até agora estivemos immunes desse vírus, que pouco a pouco envenena toda a vida individual e colletiva.1


Recorremos a esta citação acima, a fim de propor aos leitores uma pequena análise sobre o discurso católico e suas manifestações anticomunistas nos espaços de memória da cidade de Ipu entre anos de 1935 a 1946. Com base nas discussões teóricas de Pierre Bordieu sobre o conceito de “poder” e suas representações simbólicas na cidade, procuramos apresentar o Ipu como sacralização de um espaço “sagrado”, analisando o projeto de (re)aproximação da Igreja no mundo do trabalho durante o pós-30, como reação das idéias advindas do sindicalismo “vermelho” no chamado mundo moderno.
Com a criação de algumas associações católicas e mutualistas na cidade, como o Círculo Operário(1932), Clube Artista Ipuense (1935) Cine Teatro Moderno (1946), e outros podemos afirmar que durante os anos de 1930 em diante o novo conceito de trabalho é assimilado pelos representantes da Igreja e do comércio a partir da ótica de uma ideologia citadina e sua política de normatização social.
Assim, entendemos a cidade “sagrada” dentro de um projeto de disciplina, reação e ordenamento dos sujeitos sociais, como parte do discurso vigilante da Igreja sobre o seu rebanho. Desse modo, o “trabalho” passa a ser vinculado como símbolo mediador do progresso na cidade através dos “lugares de memória”, construídos para referenciar o desejo de uma elite católica que se queria nobre e moderna.
Com esse objetivo, a obrigatoriedade do labor e seu conceito cristão sobre o trabalho assinala a própria visão do “ser operário” com as aspirações de uma “elite” que pensava a cidade como um enorme “campo de concentração fabril”, onde os conflitos passam a ser silenciados pela ação pedagógica da Igreja nos espaços de memória da cidade. Nesse ambiente, os aspectos do discurso católico e anticomunista é percebido por nós como fator de difusão do tradicionalíssimo ultramontano e conservador. O que de fato traduz um esforço da Igreja na regeneração dos costumes sociais através do culto religioso do trabalho, o que para Alcir Lenharo corresponde a um processo de dominação política e simbólica da imagem de Cristo no mundo religioso.

A positividade do ato de trabalhar mantém-se uma constante; ela se apoia no argumento da dimensão humanizante e regeneradora do trabalho nas imagens do Cristo Operário e seus apóstolos2.

Ao analisar a elaboração das práticas e resistências vivenciada na cidade, nos deparamos com os diferentes olhares e concepções entre os sujeitos sociais marginalizados, o que comprova as lutas e formas simbólicas de poder através dos mecanismos de controle e domínio da Igreja no combate às várias manifestações tidas como incrédulas e subversivas.
Os documentos encontrados na paróquia de Ipu, revelam que a “ameaça vermelha”, nos meados dos de 1930/40 não consistia como único inimigo a ser combatido.Com isso, o controle e vigilância sobre a vida “individual e coletiva” não se limitava apenas em apontar o sujeito comunista como única ameaça aos dogmas da Igreja. É o que notamos na linguagem discursiva da citação inicial acima.
Dessa forma, a ordem social católica e seu caráter cooperativo no “mundo do trabalho” estendia seu discurso à tradição demonológica das seis seitas condenadas pela Igreja durante o pós-30. Em 1936 é lançado no Brasil a obra de Júlio Maria sobre O anjo das Trevas3, em que qualificava o “comunismo”, ao lado do protestantismo, liberalismo, espiritismo, maçonaria e o sexualismo como sendo os seis anjos das trevas no mundo moderno: Sex sunt quae odit Dominus, ou seja, seis são as coisas que o senhor abomina.
Ao que parece, a orientação do clero católico cearense se utilizara desses conceitos do padre Júlio Maria diante de um projeto de recatolização da sociedade brasileira. É a partir da tentativa de conter os “erros modernos”, mais precisamente a ameaça do sindicalismo vermelho, impulsionado pelo primeiro Congresso do Bloco Operário e Camponês (BOC), realizado em 1930 no Ceará, que a militância católica através dos Círculos Operários Católicos redirecionam o seu olhar para as cidades interioranas da região norte da Ibiapaba, no intuito de moralizar os costumes e disciplinar os sujeitos sociais a uma vida harmônica e sem conflitos.
Convém ressaltar o período compreendido entre 1935 a 1946 em que a cidade continua em uma substancial estruturação do embelezamento do espaço urbano, o que contribui para edificação de uma memória atribuída a construção social de uma imagem sagrada na ordem urbana.
Localizada na Mesorregião do Noroeste do Estado do Ceará, a cidade de Ipu estende sobre a Serra da Ibiapaba e parte ao longo do riacho Ipuçaba, no sopé da serra, prolongando-se pelo sertão. Está situado em posição de destaque como elo de ligação entre o Sertão Central e a Serra da Ibiapaba, possuindo 75% de seu território na região dos polígono das secas e os demais 25% na região da serra onde a altitude privilegiada, a vegetação adensada e o clima ameno caracterizam um ambiente de serra úmida.4Segundo estimativa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a população alcançou em 2006 os 40.281 habitantes, tendo como principal atividade econômica o comércio, acompanhado da produção de hortifrutigranjeiro, cultivada em hortas na porção serrana do município5.
Inicialmente a escolha do tema desta pesquisa surgiu através de algumas questões levantadas com os alunos do Ensino Médio da Escola Monsenhor Gonçalo Lima no início do ano de 2007 sobre a influência do poder do latifúndio e da Igreja no processo de formação de uma cultura local voltada ao “pouco interesse” de participação política e reivindicatória da “pessoas comuns” nos espaços do trabalho. Pouco depois de me matricular no curso de Especialização em Teoria e Metodologia da História me veio a idéia de pesquisar como se deu esse processo na prática discursiva da Igreja e como se desenvolveram manifestações de resistência a esse projeto de sociedade. Busquei, então, nas leituras de Antonio Paulo Rezende sobre a cidade e seus (des)encantos modernos6 compreender as contradições de uma sociedade idealizada na própria imagem de um lugar “moderno” e “sagrado” já comentado anteriormente.
No que se refere as relações discursivas da memória anticomunista Bethania Mariane ajudou-me a compreender melhor as interpretações silenciadas do discurso jornalístico7, tendo em vista o sentido empregado na imagem negativa do sujeito comunista e suas narrativas construídas durante o levante comunista de 1935, período que coincide com o recorte inicial de nossa pesquisa.
Diante de várias leituras sobre o tema e dos “indícios” encontrados sobre a atuação anticomunista na cidade comecei a me debruçar sobre as divisões do capítulo. Árdua tarefa que me fez uma espécie de “cirurgião” na frente do computador, pois muitas vezes não conseguia ficar por satisfeito e acabava trocando e criando novos subítens, não sabendo exatamente onde colocar as fontes selecionadas. Entretanto, apesar das noites em claro sentia uma atração maior pela pesquisa até por chegar a uma organização definitiva.
No primeiro capítulo “A Cidade e o Discurso Anticomunista no Pós-30” apresentamos uma breve discussão da pesquisa e o seu contexto histórico, procurando analisar os reflexos dos acontecimentos ocorridos em 1935 no Brasil e no Ceará, conhecido como “Intentona Comunista”. Assim, procuramos identificar “o Ipu dos anos 30” dentro de uma nova conjuntura política local na representação de um discurso “modernizador” do espaço urbano, aliado a idéia de uma classe comercial católica e dirigente que pensava a cidade através da influência dos hábitos e costumes dos grandes centros urbanos. Nesse sentido a tentativa de acompanhar os “tempos modernos” chocava-se com uma sociedade tipicamente agrária e com a expansão das idéias comunistas no mundo do trabalho.
No segundo capítulo discutiremos a efetiva atuação dos “Círculos Operários no Ceará,”tendo como referência historiográfica o trabalho de Jovelina Santos sobre a disciplina e moralização dos Círculos Operários na Região Norte do Estado, acompanhado de alguns trabalhos monográficos relacionados ao assunto, no qual deixaremos para citá-los no decorrer de nosso trabalho. Em seguida destacamos a criação do “Círculo Operário de Ipu,” tendo a presença do líder circulista e Assistente Eclesiástico “Padre Cauby” na formação e disciplina do “operariado” ipuense, enriquecida com algumas fontes encontradas na casa da Sra. Socorro Paz e no periódico católico “Correio da Semana” de Sobral.
Neste mesmo capítulo abordaremos algumas discussões pertinente a militância anticomunista do Círculo Operário de Ipueiras e da cidade de Sobral, no intuito de compreender melhor a articulação da Igreja Ibiapabana e do Bispado de Sobral na preservação da disciplina e ordenamento do trabalhador do campo e da cidade.
Já no terceiro e último capítulo, “A Ferrovia e o Comunismo sob o olhar Vigilante da Igreja,” daremos importância a presença da Ferrovia como um lugar de atuação das idéias comunistas ligadas a influência do Partido Comunista (PC) de Camocim e suas formas de resistência no espaço de memória dos sujeitos sociais da Estrada de Ferro na região norte. Para tanto, procuramos desmistificar a idéia do “progresso” e de uma “cidade sagrada” e suas representações simbólicas, rememorando as práticas e experiências cotidianas de alguns supostos comunistas na cidade por meio da utilização das fontes orais.
A partir de então, a necessidade de buscar na oralidade um entendimento maior, no sentido de desvendar novos significados e formular novas interpretações fizeram-me aproximar dos textos de Alessandro Portelli sobre as práticas das entrevistas orais e a “lição de aprendizagem” adquirido nesse tipo de categoria de fonte.
Dando continuidade, no item 3.2 “O Inimigo Vermelho ronda a cidade: memórias de um Comunista chamado Madureira” buscamos reconstituir as significações diversas da memória social sobre as experiências e os discursos do “sujeito comunista” no espaço da cidade. Novamente a oralidade fora imprescindível no sentido de situar os sujeitos sociais que vivenciaram o conflito ocorrido em Ipu durante o ano de 1946.
De acordo com nossos estudos o período de redemocratização da era Vargas, é apontado na historiografia contemporânea como fator de preocupação da Igreja em relação a militância comunista no interior da zona norte do estado cearense. O ano de 1946 evidencia um dos períodos mais conturbados no embate entre a Igreja e os comunistas no mundo do trabalho, por envolver o início do processo político que culminará nas eleições de 1947, o que resultara na expulsão do líder comunista Hugo Madureira (1946).
No que se refere ao item 3.3 “A Cruzada Eucarística: Em guarda contra o Credo Vermelho,” finalizaremos com uma pequena discussão sobre a “Cruzada Infantil” como suporte do pensamento político-pedagógico da Igreja de Ipu no combate aos “desvios da fé” e suas manifestações rituais e simbólicas de poder em um espaço que se propõe sagrado.
Para melhor entendimento do leitor utilizaremos algumas imagens no corpo do trabalho não somente como algo ilustrativo mas como um suporte a mais de análise. Tais procedimentos nos ajudará a identificar estas imagens como “vestígios” da militância anticomunista na cidade.

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