INTRODUÇÃO
O espírito de fé e a instauração religiosa da
nossa gente não tem sido propícios as investidas dos inimigos da Igreja
e, até agora estivemos immunes desse vírus, que pouco a pouco envenena
toda a vida individual e colletiva.1
Recorremos a esta
citação acima, a fim de propor aos leitores uma pequena análise sobre o
discurso católico e suas manifestações anticomunistas nos espaços de
memória da cidade de Ipu entre anos de 1935 a 1946. Com base nas
discussões teóricas de Pierre Bordieu sobre o conceito de “poder” e suas
representações simbólicas na cidade, procuramos apresentar o Ipu como
sacralização de um espaço “sagrado”, analisando o projeto de
(re)aproximação da Igreja no mundo do trabalho durante o pós-30, como
reação das idéias advindas do sindicalismo “vermelho” no chamado mundo
moderno.
Com a criação de algumas associações católicas e mutualistas
na cidade, como o Círculo Operário(1932), Clube Artista Ipuense (1935)
Cine Teatro Moderno (1946), e outros podemos afirmar que durante os anos
de 1930 em diante o novo conceito de trabalho é assimilado pelos
representantes da Igreja e do comércio a partir da ótica de uma
ideologia citadina e sua política de normatização social.
Assim,
entendemos a cidade “sagrada” dentro de um projeto de disciplina, reação
e ordenamento dos sujeitos sociais, como parte do discurso vigilante da
Igreja sobre o seu rebanho. Desse modo, o “trabalho” passa a ser
vinculado como símbolo mediador do progresso na cidade através dos
“lugares de memória”, construídos para referenciar o desejo de uma elite
católica que se queria nobre e moderna.
Com esse objetivo, a
obrigatoriedade do labor e seu conceito cristão sobre o trabalho
assinala a própria visão do “ser operário” com as aspirações de uma
“elite” que pensava a cidade como um enorme “campo de concentração
fabril”, onde os conflitos passam a ser silenciados pela ação pedagógica
da Igreja nos espaços de memória da cidade. Nesse ambiente, os aspectos
do discurso católico e anticomunista é percebido por nós como fator de
difusão do tradicionalíssimo ultramontano e conservador. O que de fato
traduz um esforço da Igreja na regeneração dos costumes sociais através
do culto religioso do trabalho, o que para Alcir Lenharo corresponde a
um processo de dominação política e simbólica da imagem de Cristo no
mundo religioso.
A positividade do ato de trabalhar mantém-se uma
constante; ela se apoia no argumento da dimensão humanizante e
regeneradora do trabalho nas imagens do Cristo Operário e seus
apóstolos2.
Ao analisar a elaboração das práticas e resistências
vivenciada na cidade, nos deparamos com os diferentes olhares e
concepções entre os sujeitos sociais marginalizados, o que comprova as
lutas e formas simbólicas de poder através dos mecanismos de controle e
domínio da Igreja no combate às várias manifestações tidas como
incrédulas e subversivas.
Os documentos encontrados na paróquia de
Ipu, revelam que a “ameaça vermelha”, nos meados dos de 1930/40 não
consistia como único inimigo a ser combatido.Com isso, o controle e
vigilância sobre a vida “individual e coletiva” não se limitava apenas
em apontar o sujeito comunista como única ameaça aos dogmas da Igreja. É
o que notamos na linguagem discursiva da citação inicial acima.
Dessa
forma, a ordem social católica e seu caráter cooperativo no “mundo do
trabalho” estendia seu discurso à tradição demonológica das seis seitas
condenadas pela Igreja durante o pós-30. Em 1936 é lançado no Brasil a
obra de Júlio Maria sobre O anjo das Trevas3, em que qualificava o
“comunismo”, ao lado do protestantismo, liberalismo, espiritismo,
maçonaria e o sexualismo como sendo os seis anjos das trevas no mundo
moderno: Sex sunt quae odit Dominus, ou seja, seis são as coisas que o
senhor abomina.
Ao que parece, a orientação do clero católico
cearense se utilizara desses conceitos do padre Júlio Maria diante de um
projeto de recatolização da sociedade brasileira. É a partir da
tentativa de conter os “erros modernos”, mais precisamente a ameaça do
sindicalismo vermelho, impulsionado pelo primeiro Congresso do Bloco
Operário e Camponês (BOC), realizado em 1930 no Ceará, que a militância
católica através dos Círculos Operários Católicos redirecionam o seu
olhar para as cidades interioranas da região norte da Ibiapaba, no
intuito de moralizar os costumes e disciplinar os sujeitos sociais a uma
vida harmônica e sem conflitos.
Convém ressaltar o período
compreendido entre 1935 a 1946 em que a cidade continua em uma
substancial estruturação do embelezamento do espaço urbano, o que
contribui para edificação de uma memória atribuída a construção social
de uma imagem sagrada na ordem urbana.
Localizada na Mesorregião do
Noroeste do Estado do Ceará, a cidade de Ipu estende sobre a Serra da
Ibiapaba e parte ao longo do riacho Ipuçaba, no sopé da serra,
prolongando-se pelo sertão. Está situado em posição de destaque como elo
de ligação entre o Sertão Central e a Serra da Ibiapaba, possuindo 75%
de seu território na região dos polígono das secas e os demais 25% na
região da serra onde a altitude privilegiada, a vegetação adensada e o
clima ameno caracterizam um ambiente de serra úmida.4Segundo estimativa
do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a população
alcançou em 2006 os 40.281 habitantes, tendo como principal atividade
econômica o comércio, acompanhado da produção de hortifrutigranjeiro,
cultivada em hortas na porção serrana do município5.
Inicialmente a
escolha do tema desta pesquisa surgiu através de algumas questões
levantadas com os alunos do Ensino Médio da Escola Monsenhor Gonçalo
Lima no início do ano de 2007 sobre a influência do poder do latifúndio e
da Igreja no processo de formação de uma cultura local voltada ao
“pouco interesse” de participação política e reivindicatória da “pessoas
comuns” nos espaços do trabalho. Pouco depois de me matricular no curso
de Especialização em Teoria e Metodologia da História me veio a idéia
de pesquisar como se deu esse processo na prática discursiva da Igreja e
como se desenvolveram manifestações de resistência a esse projeto de
sociedade. Busquei, então, nas leituras de Antonio Paulo Rezende sobre a
cidade e seus (des)encantos modernos6 compreender as contradições de
uma sociedade idealizada na própria imagem de um lugar “moderno” e
“sagrado” já comentado anteriormente.
No que se refere as relações
discursivas da memória anticomunista Bethania Mariane ajudou-me a
compreender melhor as interpretações silenciadas do discurso
jornalístico7, tendo em vista o sentido empregado na imagem negativa do
sujeito comunista e suas narrativas construídas durante o levante
comunista de 1935, período que coincide com o recorte inicial de nossa
pesquisa.
Diante de várias leituras sobre o tema e dos “indícios”
encontrados sobre a atuação anticomunista na cidade comecei a me
debruçar sobre as divisões do capítulo. Árdua tarefa que me fez uma
espécie de “cirurgião” na frente do computador, pois muitas vezes não
conseguia ficar por satisfeito e acabava trocando e criando novos
subítens, não sabendo exatamente onde colocar as fontes selecionadas.
Entretanto, apesar das noites em claro sentia uma atração maior pela
pesquisa até por chegar a uma organização definitiva.
No primeiro
capítulo “A Cidade e o Discurso Anticomunista no Pós-30” apresentamos
uma breve discussão da pesquisa e o seu contexto histórico, procurando
analisar os reflexos dos acontecimentos ocorridos em 1935 no Brasil e no
Ceará, conhecido como “Intentona Comunista”. Assim, procuramos
identificar “o Ipu dos anos 30” dentro de uma nova conjuntura política
local na representação de um discurso “modernizador” do espaço urbano,
aliado a idéia de uma classe comercial católica e dirigente que pensava a
cidade através da influência dos hábitos e costumes dos grandes centros
urbanos. Nesse sentido a tentativa de acompanhar os “tempos modernos”
chocava-se com uma sociedade tipicamente agrária e com a expansão das
idéias comunistas no mundo do trabalho.
No segundo capítulo
discutiremos a efetiva atuação dos “Círculos Operários no Ceará,”tendo
como referência historiográfica o trabalho de Jovelina Santos sobre a
disciplina e moralização dos Círculos Operários na Região Norte do
Estado, acompanhado de alguns trabalhos monográficos relacionados ao
assunto, no qual deixaremos para citá-los no decorrer de nosso trabalho.
Em seguida destacamos a criação do “Círculo Operário de Ipu,” tendo a
presença do líder circulista e Assistente Eclesiástico “Padre Cauby” na
formação e disciplina do “operariado” ipuense, enriquecida com algumas
fontes encontradas na casa da Sra. Socorro Paz e no periódico católico
“Correio da Semana” de Sobral.
Neste mesmo capítulo abordaremos
algumas discussões pertinente a militância anticomunista do Círculo
Operário de Ipueiras e da cidade de Sobral, no intuito de compreender
melhor a articulação da Igreja Ibiapabana e do Bispado de Sobral na
preservação da disciplina e ordenamento do trabalhador do campo e da
cidade.
Já no terceiro e último capítulo, “A Ferrovia e o Comunismo
sob o olhar Vigilante da Igreja,” daremos importância a presença da
Ferrovia como um lugar de atuação das idéias comunistas ligadas a
influência do Partido Comunista (PC) de Camocim e suas formas de
resistência no espaço de memória dos sujeitos sociais da Estrada de
Ferro na região norte. Para tanto, procuramos desmistificar a idéia do
“progresso” e de uma “cidade sagrada” e suas representações simbólicas,
rememorando as práticas e experiências cotidianas de alguns supostos
comunistas na cidade por meio da utilização das fontes orais.
A
partir de então, a necessidade de buscar na oralidade um entendimento
maior, no sentido de desvendar novos significados e formular novas
interpretações fizeram-me aproximar dos textos de Alessandro Portelli
sobre as práticas das entrevistas orais e a “lição de aprendizagem”
adquirido nesse tipo de categoria de fonte.
Dando continuidade, no
item 3.2 “O Inimigo Vermelho ronda a cidade: memórias de um Comunista
chamado Madureira” buscamos reconstituir as significações diversas da
memória social sobre as experiências e os discursos do “sujeito
comunista” no espaço da cidade. Novamente a oralidade fora
imprescindível no sentido de situar os sujeitos sociais que vivenciaram o
conflito ocorrido em Ipu durante o ano de 1946.
De acordo com nossos
estudos o período de redemocratização da era Vargas, é apontado na
historiografia contemporânea como fator de preocupação da Igreja em
relação a militância comunista no interior da zona norte do estado
cearense. O ano de 1946 evidencia um dos períodos mais conturbados no
embate entre a Igreja e os comunistas no mundo do trabalho, por envolver
o início do processo político que culminará nas eleições de 1947, o que
resultara na expulsão do líder comunista Hugo Madureira (1946).
No
que se refere ao item 3.3 “A Cruzada Eucarística: Em guarda contra o
Credo Vermelho,” finalizaremos com uma pequena discussão sobre a
“Cruzada Infantil” como suporte do pensamento político-pedagógico da
Igreja de Ipu no combate aos “desvios da fé” e suas manifestações
rituais e simbólicas de poder em um espaço que se propõe sagrado.
Para
melhor entendimento do leitor utilizaremos algumas imagens no corpo do
trabalho não somente como algo ilustrativo mas como um suporte a mais de
análise. Tais procedimentos nos ajudará a identificar estas imagens
como “vestígios” da militância anticomunista na cidade.
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