domingo, 18 de maio de 2014


Em discurso em 10 de outubro de 1894, por ocasião da inauguração da estação
ferroviária de Ipu, Dr. Antonio Ibiapina, intendente municipal, dizia:
Eu quizera que as minhas palavras ressoasse como um brado, nesse momento
em que verdadeiramente comemora-se uma das mais brilhantes conquistas do
progresso humano.
(...) Mais longe sobre as ruínas do tugúrio, onde a penúria esconde a sua
vergonha, elevar-se à casa onde o trabalho traz a lume a sua bastança; as
urzes e os candos, que vicejam ali, vão servir de estrume a novas
sementeiras; o trogloyta (sic) renunciará a caverna para entrar no covivio
social, recoveiro dá lugar ao maquinista, o lavrador de enchada ao hombro,
disputa ás feras o domínio das selvas, e finalmente o próprio homem renovarse-
á na corrente das idéias novas que há de revolver o ambiente, elevando os
costumes, escolarizado os espírito e fortificando os caracteres.14
A chegada da ferrovia é vista, no discurso do Dr. Antonio Ibiapina como o
momento da transformação. A ferrovia representa a mudança, mesmo nos lugares mais
distantes, da habitação rústica (tugúrio) para a casa, onde o fogo, a luz (o lume) traz a
prosperidade (bastança). Em que da planta rústica do terreno inculto (cardos) irá servir de
fertilizante (estrume) a novas sementes, onde o troglodita, “bárbaro”, “ignorante”,
“primitivo” renunciará à escuridão da caverna para viver em sociedade, onde o atraso dará
lugar ao maquinista, ao desenvolvimento.
Ainda no discurso de inauguração da estação: “(...) O trem de ferro é
iniludivelmente um dos maravilhosos inventos da ciencia, esse audacioso prometeu que
roubou ao céu a centelha creadora para inflamar e vivificar aquela extrutura pesada
(...)”15(grifo nosso).
Assim como o fogo roubado dos deuses ensinou o trabalho ao homem - desde esse
dia o progresso teria sido contínuo - a ferrovia ensinaria ao ipuense o trabalho, que levaria
ao progresso do município. “O sibilo da locomotiva lembra-vos que não tendes direito a
ociosidade, e sim, obrigação ao trabalho, é verdadeiramente um apelo a vida”.16
O discurso do Dr. Ibiapina deve ser tomado como um documento/monumento17,
portanto, carregado de intencionalidade. O seu discurso é construído no sentido de mostrar
que a ferrovia era a materialização, ou o início do progresso local. Nele a chave para o
desenvolvimento (progresso) da cidade era o trabalho. A “ociosidade”, a “indolência”18 do
ipuense daria lugar ao trabalho. O trem engendraria isso. Seu discurso está carregado de
admiração e de fascínio. Não era para menos. Para um pequeno povoado como a cidade de
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Ipu, o trem passou a ser visto como um Deus capaz de, em um passe de mágica, tirar o
lugar do “atraso” em que se encontrava. Ainda a Estação Ferroviária, prédio monumental,
colossal, contribuía para esse fascínio. Passou a ser o prédio mais imponente do lugar. O
trem, a Estação Ferroviária e o telégrafo passaram a ser vistos como os grandes símbolos do
progresso material local. Pelo menos no discurso o progresso estava chegando ao
município.
Não obstante, a partir da chegada da locomotiva o espaço urbano do Ipu se expandiu
significativamente. As fontes nos permitem afirmar, que os atuais bairros do Corte, Pereiros
e Pedrinhas, grandes bairros hoje, e que margeiam os trilhos, tenham iniciado a construção
de suas primeiras casas antes da chegada da estrada de ferro. Porém, é certo que o
crescimento do número de casas às margens da linha férrea desde os Pereiros até as
Pedrinhas só foi possível após a chegada dos trilhos. Dito de outra forma: se o surgimento
das primeiras casas nos locais onde são hoje os bairros que margeiam os trilhos é anterior a
estes, inegavelmente seu incremento ocorreu em função da ferrovia. Mais tarde o que
viriam a ser os bairros dos Pereiros, Corte e Pedrinhas, devem muito ao “monstro de ferro”.
A um observador atento, fica visível que o bairro do Corte – dividido, com suas
casas de um lado e de outro dos trilhos – tem na ferrovia, senão sua origem, pelo menos seu
crescimento. O próprio nome do bairro parece ter surgido em função do “corte” que
produziram, em um “barranco”, as obras da ferrovia.19 Os bairros também dos Pereiros e
das Pedrinhas estão próximos e margeiam os trilhos.
Em 1899, de acordo com Herculano José Rodrigues, contava a cidade de Ipu, além
da região central, com dois “subúrbios”: Reino de França e Alto dos Quatorze.20 Já em
191521, apenas dezesseis anos depois, o Ipu já contava com quatro arrabaldes: além
daqueles três a Alagoa ganhara status de bairro. O Corte e os Pereiros, embora em
processos de expansão contínuos só seriam elevados à categoria de bairros tempos mais
tarde. Estas regiões de fato ainda não haviam sido reconhecidas como tal, embora
apresentassem um número crescente de habitantes. Pedrinhas, local que ainda não era assim
chamado em 1915, também apresentava um crescimento significativo. Crescia
principalmente às margens da ferrovia e às margens do riacho Ipuçaba, que corta a cidade
no sentido Oeste-Leste.
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A ferrovia não apenas fez surgir novos núcleos de povoamento, mas também novas
ruas, novos traçados. Desloca o eixo central do “velho povoamento”, onde teria surgido a
cidade, para o novo eixo em torno da estação ferroviária. Como mostra Raimundo Alves
em sua monografia. “Rapidamente em torno do prédio da estação novos traçados de ruas
e praças se configuram. O ‘velho’ núcleo central, no ‘quadro da igrejinha’ é deixado de
lado, e a cidade tem um novo pólo de desenvolvimento representado pela estação”.22 A
cidade agora tem um novo pólo de desenvolvimento a partir da ferrovia. Ela cresce em
torno da estação ferroviária, não só em espaço físico, mas também, fundamentalmente, em
desenvolvimento econômico e social.
A estação ferroviária passa a ser o nervo e vida da cidade. Todos os dias inúmeras
pessoas, nos horários de trens transitavam em torno dela. Muitos transeuntes para ali iam
apenas para observar o “enxame” de pessoas que embarcavam e desembarcavam
diariamente. Antes dos embarques e desembarques muitos vendedores ambulantes acorriam
para a estação a fim de venderem suas mercadorias. Era a estação o local de trânsito mais
democrático da cidade. Passavam por ali, ricos, pobres, comerciantes, médicos, vendedores,
carreteiros e uma infinidade de transeuntes.
A um observador da época a pequena cidade, nos horários dos trens, ganhava ares
de um “grande centro urbano”. Geralmente aquele espetáculo de gente e mercadorias indo e
vindo duravam não mais do que 15 minutos. Logo a cidade voltada a sua rotina pacata. Era
a estação o local preferido da maioria da população.
Rachel de Queiroz que sempre viajava de trem de Fortaleza para sua fazenda “Não
me deixes” no Quixadá, deixou sua impressão das estações através da personagem Mocinha
do romance O Quinze que vendia iguarias para sua patroa numa estação:
[Mocinha] Passava quase todo o dia na Estação, alegre como uma feira, cheia
de gente como uma missa...
A Estação enxameada de guarda-freios, de bagageiros, de passageiros
alegres, que rodeavam formigando a sua mesa, na ansiedade de chegar bem
depressa, de receber de suas mãos a xícara de café, embora requentado e
engulhento.23
A estação era também o lugar mais alegre da cidade, por ser o mais movimentado.
O poeta Francisco das Chagas Paz, comerciante, poeta autodidata e que viveu em Ipu no
período áureo da ferrovia, nos deixou mais de uma dezena de cadernos com suas poesias e
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alguns livros manuscritos “publicados”. Em muitas de suas poesias ele retrata o cotidiano
da cidade. Numa delas dedicada à Maria Fumaça, deixa transparecer toda sua alegria e
nostalgia dos tempos remotos:
Ainda muito creança/Aquele trem me animava,/Não me deixavam sair,/Como
não podia ir/Numa árvore me trepava./(...)./Quando ao longe ouvia
apito/Minha mente se alvoroçava,/Naquela árvore subia,/ Porque deste modo
eu via/Quando o trem ali passava./(...)./Pela manhã, as seis horas/ Já no
pontinho eu estava/Todo cheio de atenção, Olhando pra Estação/Até que a
máquina apitava/(...)./Ao partir da Estação/Tanta gente apreciando/, Quase
em toda janelinha/Um passageiro ali tinha/Com um lenço branco acenando/.
(...)./...Foi a Maria Fumaça/Que deu o progresso ao logar/,Tudo se
desenvolveu/Quando ela apareceu/Quem fez tudo melhorar.24
O poeta descreve a alegria trazida pela Maria Fumaça. Para ele teria sido a
locomotiva a responsável pelo progresso do lugar. Seu Chagas Paz faz parte de um grupo
de comerciantes que tinha na ferrovia o grande meio de transporte que permitia trazer as
mercadorias, em atacado, dos grandes centros do país e do exterior. Como farmacêutico
prático e dono de uma drogaria recebia pela ferrovia medicamentos vindos do Rio de
Janeiro, Pernambuco e do exterior via porto de Camocim. Assim como muitos outros
comerciantes locais, tinha com a ferrovia e a estação uma relação afetiva e econômica
muito estreita, efetivamente para esses homens era a ferrovia a grande responsável pelo
incremento comercial do lugar, como destacamos anteriormente.
Logo, em volta da estação surgiram vendas e pensões. O Café Central, embora
surgido bem depois do período áureo da ferrovia nos primórdios do século XX, denota
ainda a sua influência no desenvolvimento econômico local. Ainda hoje, O pavilhão (antigo
Café Central), é ponto de encontro da juventude local, cujo movimento foi engendrado pela
estação. O enxame de pessoas estimulava esse tipo de estabelecimento em suas cercanias.
O Jornal dos Tabajaras, edição de setembro de 1995 publicou um artigo de Antônio
Tarcizio Aragão, mais conhecido como Boris, dedicado à estação ferroviária da época em
que ainda existiam os trens de passageiro. Nele lê-se:
Na estação, o som característico de um estridente sino que ecoava em todos
os recantos da cidade, fazia uma espécie de chamado aos passageiros e
indicava que o trem havia partido da última estação e que, dentro de 30
minutos chegava nessa cidade. A reação do povo era imediata, quem ainda
não estivesse na estação convergia em direção a ela mesmo que não fosse
viajar. Muitos iam apenas ver o trem passar, saber das novidades e de quem
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chegava ou partia (...) Quando a locomotiva apitava no corte ou na curva das
pedrinhas o alvoroço era generalizado (...) Os vendedores de guloseimas,
agitados, corriam de um lado para o outro e gritavam oferecendo os seus
produtos. (olha o café quentinho feito na hora, olha a tapioca, laranja, doce,
batida da Sussuanha, tijolinho de coco.25
Embora esta descrição seja posterior ao período de nosso estudo ela mostra muito
do que ocorria no início do século em torno da estação. Era, pois a Estação o rubro veio da
cidade.

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