segunda-feira, 28 de abril de 2014

 Um Bairro Chamado Brasil

Quero aqui falar de alguns personagens que habitam e constituem meu bairro. Moro em um local periférico, um pouco afastado do centro da cidade, o que não nos impede da convivência charmosa e harmoniosa de pessoas da mais alta singularidade. Destacarei alguns desses seres ímpares.

O primeiro deles, Seu Saúde, é um simpático senhor que durante toda sua vida esforçou-se ao máximo para que seus feitos chegassem ao conhecimento e ao usufruto de todos. Gosta ele de ser chamado por seu pomposo nome acrescido de seu sobrenome: Seu Saúde Pública.

Esqueci de mencionar o mais importante: Seu Saúde é músico, um verdadeiro artista! Durante todo seu pernoitar neste mundo tentou, quase sempre em vão, que suas partituras, suas letras, seus arranjos e suas melodias fossem do conhecimento do grande público. Hoje, com sua saúde já debilitada, torce para que seus versos sejam mais lidos, mais compreendidos e mais executados também.

Apesar de ter sido assessorado por grandes intelectuais, ilustres nomes do pensar, Seu Saúde nunca passou de um augusto desconhecido das grandes massas. Aliás, seu nome até ecoa dos barracos favelizados às mansões imperiais. Porém é apenas seu nome, e não a pessoa Saúde Pública e suas benesses artístico-culturais que faz voz nas pessoas.

Não são suas melodias faustosas e seus promissores efeitos que o público conhece, é apenas seu nome, como uma promessa de uma utopia ainda distante.

Não obstante sua simpatia e mesmo sua tímida aproximação com seu público em potencial, Seu Saúde não conseguiu conquistar o grande amor da sua vida: uma senhora às vezes rabugenta demais, às vezes sensível demais. Mas o que mais a identifica é seu estranho e desdenhoso hábito de fazer promessas as quais não consegue cumprir. Atende pelo promíscuo nome de Constituição Cidadã.

Ao falarmos da vida desta quase caducante senhora que por toda sua vida passou por incontáveis quedas e posteriores modificações – algumas radicais outras nem tanto – até apodar-se de Constituição Cidadã, logo nos fazemos lembrar os políticos de nosso país: tudo nos prometem, tudo nos garantem e nunca nos dizem um "não". Apesar desta comparação, sei que D. Constituição vive repetindo pelo bairro que não gosta de política, dizendo-se apartidária e neutra.

Porém um algo a mais tem em seus dizeres que a difere de um mero discurso panfletário. Sua voz serena mas firme parece-nos ter a força de leis escritas. Se é ela quem fala, logo nos tranquilizamos. Um dos argumentos mais convincentes do bairro, quase um chavão, usado nas mesas de bar ou mesmo nas brigas entre vizinhos por um pedaço a mais de varal é: "Foi D. Constituição que garantiu".

Agora vou apresentar outro cidadão que também é um ícone do bairro onde moro. É daqueles sujeitos que se conhece e nunca se esquece. Ou se gosta muito dele ou o deixamos a falar a sós, com suas promessas mirabolantes e pouco modestas. Ele é um dos cidadãos mais fanfarrões que se tem notícia. Com um discurso recheado de palavras bonitas - a maioria retóricas e prolixas – apresenta-se aos outros quase como uma panaceia dos problemas alheios. Diz ser capaz de resolver todos os dilemas dos outros. Mais: se diz o caminho para a autonomia dos processos subjetivos. Seu nome, Educação Brasileira.

Seu Educação muitas vezes é tomado no bairro como uma pessoa arrogante. Sobretudo porque, ao aqui chegar, também prometera, assim como D. Constituição, coisas que não pôde cumprir. A diferença é que fizera juras de mudanças a longo prazo, pediu tempo, o que lhe foi dado, mas não deu o devido retorno à comunidade, já que prometeu liberdade e auto-suficiência ao fim de um processo. Tal processo, como já foi dito, mostrou-se falho.

Já falei de sua coincidência com D. Constituição. Agora vou lhes dizer de sua semelhança com Seu Saúde. Os dois amam e nunca conquistaram a mesma mulher. Isso mesmo, D. Constituição é também dona do coração de Seu Educação.

Seria uma grande falha minha se não vos dissesse que esta senhora que a tudo promete é casada com Seu Brasil Lesado Pelos Outros.

Dado a imponência e a variedade de seus sobrenomes, Seu Brasil sabe que é a figura de maior poder aquisitivo do bairro. O que não sabe é que sua fortuna poderia multiplicar-se por infinitas vezes se se desse conta de sua riqueza em potencial.

Seu Brasil teve muitos filhos em sua espessa, lânguida e, por assim dizer, fértil vida. Em sua imensa maioria canalhas, calhordas e cafajestes. Isso só pra não sair da letra 'c'.

Cabe dizer que, apesar de seu casamento longínquo e duradouro com D. Constituição, muitos de seus filhos são frutos de outras "transações" maliciosas, resultados de sua solteirice. Lascívias voláteis. O que não posso negar é sua rara habilidade em dar nomes criativos para seus muitos filhos. Alguns nomes: "Dívida Externa", "Subdesenvolvimento", "Censura", "Povo Sem Educação", "Povo Sem Saúde", "País do Futebol", "País do Futuro", "Seu Zé", "D. Maria"...

Ao longo de sua vida Seu Brasil teve um sem número de empregados que lhe passaram a perna. Apesar de seu filho "Jeitinho Brasileiro" tentar ajudar-lhe, o marido de D. Constituição sempre teve suas receitas – como diria um filho do casal, Chico Buarque de Hollanda –, "subtraídas em tenebrosas transações".

Em sua vida já vendeu de tudo para sobreviver: madeira, açúcar, escravos, ouro, café. Hoje se vende em cada esquina, a cada passo inseguro e vacilante. Vende-se a preços tabelados. Porém orgulha-se de vender a si mesmo e aos filhos ao sabor do preço do petróleo. Além do mais, vende-se em dólar. Orgulha-se também de ter amigos no exterior que lhe emprestam, sempre que precisa, dinheiro a juros irreais e desumanos.

D. Constituição tem-lhe um grande carinho e, apesar das tantas quebras e rinhas, acha-se muito feliz em seu matrimônio. O que mais admira em seu marido são os filhos dele e a capacidade que estes têm, contra todas as expectativas, de amá-lo. Porém, reza que preferiria que a riqueza de Seu Brasil fosse melhor repartida entre seus descendentes.

Seu enlace amoroso deu-se nos primeiros anos da década de 1820. Em 1824 deu-se o casório, com toda pompa e circunstância, tal como num matrimônio imperial. Apesar do posterior rompimento dos dois com a Igreja Católica foi esta quem abençoou, em nome de um Deus onipotente e onipresente, a união do nascente casal.

Seu Brasil nunca traiu o matrimônio, apesar de quase nunca conseguir cumprir o que prometera a D. Constituição. Esta, se não teve amantes fixos, teve pelo menos duas puladas de cerca.

A primeira delas foi com Seu Educação, na qual firmaram um tênue relacionamento que prometia ser benéfico para todo o bairro. Como se sabe, tal relacionamento não deixou outro fruto a não ser a desmoralização e o descrédito de Seu Brasil perante sua comunidade.

A segunda vez foi com Seu Saúde Pública, na qual viveram um intenso, porém finito grande amor. Quiseram eles unirem-se mas D. Constituição o achava muito longe do povo, destoando daquelas lindas palavras que ele lhe falava ao ouvido.

D. Constituição até que gostou dos dois, mas sabia que não podia se desvincular de seus laços afetivos e constitutivos de seu esposo. Preferiu, então, mais uma vez, jogar toda a carga daquilo que não conseguia resolver pra cima de outrem, que também, sabia ela, fugia-lhe à alçada de resolução.

Sobre o espinhaço dilacerado de mágoas e descaminhos de Seu Brasil, D. Constituição jogou-lhe as cargas de algo que ela só pode garantir através de palavras: que o ideário utópico de Seu Saúde Pública chegue, de fato, às camadas mais populares e que Seu Educação Brasileira consiga transformar em eventos práticos e teorias prenhes suas falas retóricas e, por vezes, ingenuamente ufânicas.

Fez, pois, o que sempre fizera: prometera; aliás, garantira! Sob as costas magras, ossudas e velhacas de quem lhe desposara; sob um discurso pós-moderno de um Estado neo-liberal transformou seu marido em um paternalista já fora de moda (que ainda reclama um absolutismo setecentista), esquecendo-se dos modelos em voga, contradizendo-se e vitimando-se a si mesma, fadando Seu Brasil ao insucesso, quiçá ao aniquilamento.

20.jun.2009


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