sábado, 23 de fevereiro de 2013


Cantata de Iracema


  Arranjo em estrofes, do capítulo inicial de Iracema, sem acréscimo       ou diminuição de uma vírgula, por Soares Feitosa



Verdes mares bravios de minha terra natal,
onde canta a jandaia
nas frondes da carnaúba;
verdes mares, que brilhais
como líquida esmeralda
aos raios do sol nascente,
perlongando as alvas praias
ensombradas de coqueiros.

Serenai, verdes mares e alisai
docemente a vaga impetuosa,
para que o barco do aventureiro
manso resvale à flor das águas.

Onde vai a afouta jangada,
que deixa rápida
a costa cearense, aberta
ao fresco terral a grande vela?
..................
...........
.....
...

Além,
muito além
daquela serra que ainda azula
no horizonte, nasceu
Iracema.

Iracema,
a virgem
dos lábios de mel, que tinha os cabelos
mais negros
que a asa da graúna
e mais longos
que seu talhe de palmeira.

O favo do jati não era
doce como seu sorriso;
nem a baunilha recendia
no bosque como seu hálito
perfumado.

Mais rápida que a ema
selvagem, a morena virgem
corria o sertão e as matas
do Ipu, onde
campeava sua guerreira tribo,
da grande nação tabajara.
O pé, grácil e nu,
mal roçando,
alisava
apenas a verde pelúcia
que vestia terra com as primeiras águas.

Um dia, ao pino o sol,
ela repousava em um claro
da floresta.
Banhava-lhe
o corpo a sombra da oiticica,
mais fresca do que o orvalho da noite.

Os ramos da acácia silvestre
esparziam flores sobre
os úmidos cabelos.

Escondidos na folhagem
os pássaros
ameigavam o canto.

Iracema saiu do banho; o aljôfar
d'água ainda a rorejava,
como à doce mangaba que corou
em manhã de chuva.

Enquanto repousa, empluma
das penas do gará as flechas
de seu arco e concerta
com o sabiá
da mata
pousado no galho próximo,
o canto agreste.

A graciosa ará, sua companheira
e amiga, brinca
junto dela.

Às vezes sobe aos ramos
da árvore e de lá chama
a virgem
pelo nome;
outras, remexe o uru
de palha matizada,
onde traz a selvagem seus perfumes;
os alvos fios de crautá,
as agulhas de juçara com que tece
a renda,
e as tintas
de que matiza o algodão.

Rumor suspeito
quebra
a doce harmonia
da sesta.

Ergue a virgem os olhos,
que o sol não deslumbra;
sua vista perturba-se.

Diante dela
e todo
a contemplá-la,
está
um guerreiro estranho,
se é guerreiro e não
algum mau espírito
da floresta.

Tem nas faces o branco
das areias que bordam o mar,
nos olhos
o azul triste das águas
profundas.
Ignotas armas
e ignotos tecidos cobrem-lhe
o corpo.

Foi rápido, como o olhar,
o gesto
de Iracema.
A flecha
embebida no arco
partiu.
Gostas de sangue borbulham
na face
do desconhecido.

De primeiro ímpeto,
a mão lesta caiu
sobre
a cruz da espada.

O moço guerreiro aprendeu
na religião de sua mãe, onde
a mulher
é símbolo
de ternura e amor.
Sofreu mais
d'alma do que da ferida.

O sentimento que ele pôs
nos olhos e no rosto
não o sei eu.

Porém a virgem lançou
de si o arco e auiruçaba, e correu
para o guerreiro, sentida
da mágoa que causara.

A mão que rápida ferira,
estancou mais rápida
e compassiva
o sangue que gotejava.

Depois Iracema quebrou a flecha homicida;
deu a haste ao desconhecido,
guardando consigo
a ponta farpada.

O guerreiro falou:

— Quebras comigo a flecha da paz

— Quem te ensinou, guerreiro branco,
a linguagem
de meus irmãos?

Donde a estas matas,
que nunca viram
outro guerreiro como tu?

— Venho de bem longe,
filha das florestas.
Venho das terras
que teus irmãos já possuíram,
e hoje têm os meus.

— Bem vindo seja o estrangeiro
aos campos dos tabajaras,
senhores das aldeias, e à cabana
de Araquém,
pai de Iracema.

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